São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

A farsa tributária: desinterditando o debate

RICARDO BERZOINI

As declarações de Lula sobre o Imposto de Renda da pessoa física acionaram os alarmes dos que não querem a reforma tributária. Essa reforma é o chamado "falso consenso" -todos são a favor dela, até que comecem a ser definidos os rumos das mudanças. Em especial, no que tange ao IR da pessoa física, a hipocrisia é o caminho preferido por muitos.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que o nosso sistema tributário tem muitos defeitos. Eles começam pelo alto grau de cumulatividade (impostos em cascata, como a CPMF, a Cofins e o PIS), agravado pelos aumentos de alíquotas no governo FHC, o que prejudica nossas exportações. Prosseguem pelo incentivo à guerra fiscal em impostos estaduais (como o ICMS, cujas reduções e isenções foram fartamente utilizadas pelos governos da Bahia, do Paraná e de Goiás, em detrimento de um equilíbrio tributário federativo) e municipais (ISS, por meio do qual municípios das regiões metropolitanas captam sedes-fantasmas de empresas de prestação de serviços). Outra característica indesejável é a complexidade tributária, que obriga as empresas a ter custos elevados para manter-se em dia com suas obrigações.
Mas, na comparação com outros países, o que mais salta aos olhos em nosso sistema é a baixíssima progressividade. Esse princípio, previsto para todo o sistema no parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição Federal (que fala em capacidade econômica do contribuinte), tem no Imposto de Renda -seja o da pessoa física, seja o da pessoa jurídica- o principal campo para sua aplicabilidade. Por isso mesmo, a Constituição especifica, quando fala do IR da pessoa física, que "será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade" (artigo 153, parágrafo 2º, inciso I). O Brasil é um dos raros países cujo IR da pessoa física tem apenas duas alíquotas: 15% e 25% (esta última majorada para 27,5% provisoriamente em 1998/9 e prorrogada para o triênio 2000/ 2). Na maioria dos países, prevalecem sistemas com quatro a até oito alíquotas, exatamente para fazer valer a tal da progressividade.
O IR é o tributo que mais permite personalizar o contribuinte, diferenciando aqueles que têm pouca renda daqueles que têm rendas altíssimas. Ao diferenciar as alíquotas, o IR faz justiça fiscal, isentando os que estão na chamada faixa de sobrevivência e cobrando mais, progressivamente, daqueles que estão nas demais faixas de renda. O governo FHC optou por aprofundar a regressividade, ao não corrigir a tabela de desconto na fonte por seis anos. Desse modo, a faixa de isenção, que era de R$ 900 em 1996, chegou em 2001 valendo cerca de R$ 667 (em moeda corrente de 1996, considerando a inflação do período pelo IPCA). Obteve assim o crescimento de arrecadação de mais de R$ 5 bilhões por ano, tributando assalariados antes isentos, em vez de buscar ampliar a progressividade. Não fosse a insistência do PT e de entidades que organizaram campanhas pela correção da tabela, ela estaria congelada até hoje. Conseguimos 17,5% (cerca da metade da inflação do período), amenizando o confisco.
Embora os contribuintes com rendimento mensal superior a R$ 10 mil sejam apenas 0,9% do total, em 1998 eram responsáveis por mais de 20% da arrecadação do IR da pessoa física. E qual a razão disso? O fato é que rendas mensais maiores que R$ 10 mil são raras no Brasil, mas os 103 mil brasileiros que estão nessas condições declararam patrimônio de R$ 149 bilhões -cerca de 15% do patrimônio total declarado ao fisco pelas pessoas físicas. Ou seja, mesmo abstraindo sonegação de informações, podemos ter por aí uma idéia da concentração de renda. Esse 0,9% representava, em 1998, mais de 20% do total arrecadado pelo IR da pessoa física, mesmo com uma alíquota máxima muito mais baixa que as praticadas internacionalmente. Se quisermos, portanto, utilizar o sistema tributário como um dos instrumentos de redução de desigualdades de renda e de patrimônio em nosso país, será preciso aumentar a faixa de isenção, iniciar a tributação por uma alíquota menor que os 15% atuais e dar uma graduação de alíquotas coerente com nossa distribuição de faixas de renda e de patrimônio. Assim como o IPTU progressivo, o IR da pessoa física efetivamente progressivo é uma prática tributária internacionalmente reconhecida como instrumento real de justiça tributária. Em um país com a distribuição de renda e de riqueza absurdamente concentrada como o Brasil, sua necessidade é ainda mais imperiosa.
Obviamente, isso pode ser materializado de diversas formas. O Brasil já teve tabelas com maior número de alíquotas. Até 1995 vigorava a alíquota de 35%. A média da alíquota máxima nos países da América Latina era de 34,2% em 1997 e, nos países da OCDE, de 43,6%. Em alguns países, em vez de haver uma faixa de isenção de tributação, há uma política de deduções para dependentes, alimentação, saúde, educação e juros de financiamento imobiliário, o que acaba funcionando melhor como isenção personalizada.
Mas esse não é o debate mais importante. O que nos interessa discutir é a reforma tributária como um todo. Para não ficarmos reféns do falso consenso, é preciso estabelecer princípios. Se quisermos eliminar o peso dos impostos indiretos, será preciso ampliar a carga dos diretos. Se pretendemos coibir a guerra fiscal, é preciso saber que alguns Estados perderão receita e outros terão ampliação dela. Se reduzirmos a tributação da classe média baixa, teremos de ter, sim, alíquotas maiores de IR para o 0,9% da população que está no topo da pirâmide e, ainda assim, buscar o 0,3% que está no "cume do topo" para cobrar o que lhe cabe.
O governo FHC carregou nos impostos indiretos e cumulativos, como a Cofins e a CPMF, e aliviou os impostos diretos sobre o lucro das grandes empresas. Um exemplo é a possibilidade, concedida a partir de 1995, de deduzir os juros sobre o capital próprio da base tributária do IR das pessoas jurídicas e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Esse benefício às empresas muito capitalizadas permitiu a redução da tributação do lucro das empresas, em especial dos bancos e das concessionárias de serviços públicos.
É verdade que, estrategicamente, podemos reduzir a carga tributária e inverter sua concentração na União. Com juros mais baixos e um orçamento mais bem construído, devemos afugentar a necessidade de superávits primários da ordem de 3% a 4% do PIB. No entanto não podemos negar que os primeiros dois anos de um governo popular podem ser difíceis no aspecto orçamentário.
Por isso, mais importante que discutir alíquotas do IR da pessoa física é estabelecer as linhas gerais de uma reforma tributária que ataque com profundidade o "manicômio tributário" criado no governo FHC.


Ricardo Berzoini é deputado federal pelo PT-SP.


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