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OPINIÃO ECONÔMICA
A farsa tributária: desinterditando o debate
RICARDO BERZOINI
As declarações de Lula sobre o Imposto de Renda da
pessoa física acionaram os alarmes dos que não querem a reforma tributária. Essa reforma é o
chamado "falso consenso" -todos são a favor dela, até que comecem a ser definidos os rumos
das mudanças. Em especial, no
que tange ao IR da pessoa física, a
hipocrisia é o caminho preferido
por muitos.
Antes de mais nada, é preciso
lembrar que o nosso sistema tributário tem muitos defeitos. Eles
começam pelo alto grau de cumulatividade (impostos em cascata,
como a CPMF, a Cofins e o PIS),
agravado pelos aumentos de alíquotas no governo FHC, o que
prejudica nossas exportações.
Prosseguem pelo incentivo à
guerra fiscal em impostos estaduais (como o ICMS, cujas reduções e isenções foram fartamente
utilizadas pelos governos da Bahia, do Paraná e de Goiás, em detrimento de um equilíbrio tributário federativo) e municipais
(ISS, por meio do qual municípios
das regiões metropolitanas captam sedes-fantasmas de empresas
de prestação de serviços). Outra
característica indesejável é a
complexidade tributária, que
obriga as empresas a ter custos
elevados para manter-se em dia
com suas obrigações.
Mas, na comparação com outros países, o que mais salta aos
olhos em nosso sistema é a baixíssima progressividade. Esse princípio, previsto para todo o sistema
no parágrafo 1º do artigo 145 da
Constituição Federal (que fala em
capacidade econômica do contribuinte), tem no Imposto de Renda -seja o da pessoa física, seja o
da pessoa jurídica- o principal
campo para sua aplicabilidade.
Por isso mesmo, a Constituição
especifica, quando fala do IR da
pessoa física, que "será informado
pelos critérios da generalidade,
da universalidade e da progressividade" (artigo 153, parágrafo 2º,
inciso I). O Brasil é um dos raros
países cujo IR da pessoa física tem
apenas duas alíquotas: 15% e
25% (esta última majorada para
27,5% provisoriamente em 1998/9
e prorrogada para o triênio 2000/
2). Na maioria dos países, prevalecem sistemas com quatro a até
oito alíquotas, exatamente para
fazer valer a tal da progressividade.
O IR é o tributo que mais permite personalizar o contribuinte, diferenciando aqueles que têm pouca renda daqueles que têm rendas
altíssimas. Ao diferenciar as alíquotas, o IR faz justiça fiscal, isentando os que estão na chamada
faixa de sobrevivência e cobrando
mais, progressivamente, daqueles
que estão nas demais faixas de
renda. O governo FHC optou por
aprofundar a regressividade, ao
não corrigir a tabela de desconto
na fonte por seis anos. Desse modo, a faixa de isenção, que era de
R$ 900 em 1996, chegou em 2001
valendo cerca de R$ 667 (em moeda corrente de 1996, considerando
a inflação do período pelo IPCA).
Obteve assim o crescimento de arrecadação de mais de R$ 5 bilhões
por ano, tributando assalariados
antes isentos, em vez de buscar
ampliar a progressividade. Não
fosse a insistência do PT e de entidades que organizaram campanhas pela correção da tabela, ela
estaria congelada até hoje. Conseguimos 17,5% (cerca da metade
da inflação do período), amenizando o confisco.
Embora os contribuintes com
rendimento mensal superior a R$
10 mil sejam apenas 0,9% do total, em 1998 eram responsáveis
por mais de 20% da arrecadação
do IR da pessoa física. E qual a razão disso? O fato é que rendas
mensais maiores que R$ 10 mil
são raras no Brasil, mas os 103 mil
brasileiros que estão nessas condições declararam patrimônio de
R$ 149 bilhões -cerca de 15% do
patrimônio total declarado ao fisco pelas pessoas físicas. Ou seja,
mesmo abstraindo sonegação de
informações, podemos ter por aí
uma idéia da concentração de
renda. Esse 0,9% representava,
em 1998, mais de 20% do total arrecadado pelo IR da pessoa física,
mesmo com uma alíquota máxima muito mais baixa que as praticadas internacionalmente. Se
quisermos, portanto, utilizar o
sistema tributário como um dos
instrumentos de redução de desigualdades de renda e de patrimônio em nosso país, será preciso
aumentar a faixa de isenção, iniciar a tributação por uma alíquota menor que os 15% atuais e dar
uma graduação de alíquotas coerente com nossa distribuição de
faixas de renda e de patrimônio.
Assim como o IPTU progressivo, o
IR da pessoa física efetivamente
progressivo é uma prática tributária internacionalmente reconhecida como instrumento real
de justiça tributária. Em um país
com a distribuição de renda e de
riqueza absurdamente concentrada como o Brasil, sua necessidade é ainda mais imperiosa.
Obviamente, isso pode ser materializado de diversas formas. O
Brasil já teve tabelas com maior
número de alíquotas. Até 1995 vigorava a alíquota de 35%. A média da alíquota máxima nos países da América Latina era de
34,2% em 1997 e, nos países da
OCDE, de 43,6%. Em alguns países, em vez de haver uma faixa de
isenção de tributação, há uma
política de deduções para dependentes, alimentação, saúde, educação e juros de financiamento
imobiliário, o que acaba funcionando melhor como isenção personalizada.
Mas esse não é o debate mais
importante. O que nos interessa
discutir é a reforma tributária como um todo. Para não ficarmos
reféns do falso consenso, é preciso
estabelecer princípios. Se quisermos eliminar o peso dos impostos
indiretos, será preciso ampliar a
carga dos diretos. Se pretendemos
coibir a guerra fiscal, é preciso saber que alguns Estados perderão
receita e outros terão ampliação
dela. Se reduzirmos a tributação
da classe média baixa, teremos de
ter, sim, alíquotas maiores de IR
para o 0,9% da população que está no topo da pirâmide e, ainda
assim, buscar o 0,3% que está no
"cume do topo" para cobrar o que
lhe cabe.
O governo FHC carregou nos
impostos indiretos e cumulativos,
como a Cofins e a CPMF, e aliviou
os impostos diretos sobre o lucro
das grandes empresas. Um exemplo é a possibilidade, concedida a
partir de 1995, de deduzir os juros
sobre o capital próprio da base
tributária do IR das pessoas jurídicas e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Esse benefício às empresas muito capitalizadas permitiu a redução da tributação do lucro das empresas, em
especial dos bancos e das concessionárias de serviços públicos.
É verdade que, estrategicamente, podemos reduzir a carga tributária e inverter sua concentração
na União. Com juros mais baixos
e um orçamento mais bem construído, devemos afugentar a necessidade de superávits primários
da ordem de 3% a 4% do PIB. No
entanto não podemos negar que
os primeiros dois anos de um governo popular podem ser difíceis
no aspecto orçamentário.
Por isso, mais importante que
discutir alíquotas do IR da pessoa
física é estabelecer as linhas gerais
de uma reforma tributária que
ataque com profundidade o "manicômio tributário" criado no governo FHC.
Ricardo Berzoini é deputado federal
pelo PT-SP.
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