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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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LUÍS NASSIF

O maior show da história

Não sou dado ao sentimento de inveja. Mas, quando meu colega Aluízio Maranhão me contou que assistiu ao show do teatro João Caetano, de 19 de fevereiro de 1968, invejei-o.
Produzido por Hermínio Bello de Carvalho, foi o maior show ao vivo jamais registrado pela discografia nacional.
Lá estava o Zimbo Trio, no auge do seu sucesso e do estilo de música que se seguiu à bossa nova, uma MPB bastante jazzificada, que havia perdido a simplicidade criativa dos primeiros momentos, mas que tinha atrás de si a caixa de ressonância monumental de "O Fino da Bossa", da TV Record, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues.
Na primeira parte do show o Zimbo acompanhava Elizeth Cardoso. A "divina", como era chamada, era uma cantora portentosa, das maiores da história. Mas era considerada "defasada" pela iconoclastia que surgiu e se seguiu à bossa nova. A "divina" se ressentia das críticas que a davam como ultrapassada e passara a modificar seu canto, entrando no subjazz de época, assim como a própria Elis.
A MPB havia perdido o rumo da simplicidade criativa que marcou a produção de Tom Jobim e o repertório que João Gilberto trouxera dos anos 40.
A primeira parte do show começa nesse estilo, com o Zimbo esbanjando talento, mas dentro do modo datado da época, e Elizeth exercitando o estilo jazzístico, mas sem se soltar muito.
Aí se entra na segunda parte do show. Entram o conjunto "Época de Ouro" e Jacob do Bandolim. Começa uma sessão de aquecimento entre os amigos -Jacob e Elizeth se conheceram adolescentes, 30 anos antes. A música começa a tomar corpo, vai embalando, e o Rio começa a assistir ao maior momento de um dos maiores músicos da história.
Desde fins dos anos 40 Jacob vinha aprimorando seu estilo. Começou imitando Garoto, cresceu musicalmente nos anos 50, ainda muito preso à influência do mestre maior. No início dos anos 60 seguiu o conselho do maestro Radamés Gnatalli e passou a estudar música.
Cada interpretação sua tornou-se uma recriação musical, em que não havia uma nota a mais ou a menos. A cada ano acrescentava novos sons ao seu estilo. Naquela noite, no João Caetano, estava no auge da sua experiência e criatividade.
Quando entrou no show, Elizeth foi se soltando gradativamente, entrou no clima das rodas de choro do Rio, foi se libertando daquele sotaque jazzístico que não combinava com ela.
Quando se chegou ao "Barracão", samba do coronel Luiz Antônio e de Oldemar Magalhães, aqueles felizardos que compareceram ao João Caetano naquela noite saborearam um momento único da música brasileira.
Começa a música com Elizeth aquecida, o cavaquinho de Jonas, os violões de Carlinhos e Dino, o pandeiro de Jorginho puxando no ritmo, Jacob solta os primeiros desenhos, sem interferir muito na interpretação da "divina".
A música é curta, praticamente tem uma parte só. Quando Elizeth a repete, Jacob solta o verbo, uma sequência de harpejos, de desenhos quebrados, com aquela pulsação que só ele sabia tirar do bandolim. O "Época de Ouro" acompanha conduzido pelo pulso do mestre, ralentando e subindo como uma dama de pés leves conduzida pelo parceiro.
Quando Elizeth exclama "dá-lhe Jacob", o bandolim se solta de forma inesquecível. Elizeth volta para o solo e, quando se pensa que já se tinha escutado tudo, o público entra puxando um coro, em um período em que não era hábito o público cantar com o artista, muito menos ser gravado.
Foi um orgasmo, um êxtase, a visão do Criador. Depois do orgasmo divino, o show prossegue, com Jacob, Elizeth, o "Época de Ouro" e o Zimbo irmanados na musicalidade.
Um ano e meio depois Jacob morreria, a essa altura como unanimidade nacional. Os LPs do show apenas começavam uma trajetória que os transformariam, no decorrer dos anos seguintes, no maior clássico da música ao vivo brasileira.
O relançamento do show, agora, em CD, permitirá às novas gerações saborear um dos clássicos eternos da música brasileira.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br



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