São Paulo, quinta-feira, 13 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Geometria comercial

Transcorridos mais de quatro anos, Doha, a "Rodada do Desenvolvimento", ainda não fez jus ao título esperançoso

A meu pai

A RODADA Doha da OMC foi lançada, em 2001, como "Rodada do Desenvolvimento". Transcorridos mais de quatro anos e meio, ela ainda não fez, e provavelmente não fará, jus a esse título esperançoso.
Cristalizou-se, ao que parece, um impasse nas negociações. Como se podia prever, o que prevaleceu não foi a nobre preocupação com o destino dos países em desenvolvimento, mas uma barganha acirrada. Em termos esquemáticos, ela pode ser representada por um triângulo -vamos chamá-lo de "triângulo de Pascal", como sugeriu o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. A referência não é ao grande Blaise Pascal, o pensador francês do século 17, mas sim a Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC.
O "triângulo de Pascal" seria supostamente eqüilátero. Pode-se descrevê-lo do seguinte modo. Na sua base, estariam as concessões demandadas dos países emergentes como o Brasil: redução das tarifas industriais e remoção de barreiras de acesso aos mercados de serviços. Os lados do triângulo seriam as concessões demandadas dos EUA (redução de subsídios à agricultura) e da União Européia (acesso a mercados agrícolas). É uma simplificação, obviamente. Mas representa alguns dos aspectos cruciais da negociação.
Segundo Celso Amorim, o Brasil só aceitaria um acordo em que as concessões aportadas pelos desenvolvidos fossem muito maiores do que as que se pediria aos países emergentes, refletindo o fato de que a OMC e o sistema multilateral de comércio estão em pesada dívida conosco. O triângulo imaginado por ele -vamos chamá-lo de "triângulo de Amorim"- seria, portanto, um triângulo isósceles de base muito estreita.
A demanda é justa. A última rodada multilateral, a Rodada Uruguai, terminou mal para o Brasil e outros países em desenvolvimento. Países como o Brasil foram induzidos a ceder nos temas de interesse dos países desenvolvidos (por exemplo: redução de tarifas industriais, liberalização dos mercados de serviços, proteção da propriedade intelectual) sem obter contrapartidas adequadas. Nas áreas em que somos competitivos (notadamente agricultura), os países desenvolvidos reservaram-se o direito de continuar a praticar o mais deslavado protecionismo, recorrendo sistematicamente a subsídios e barreiras tarifárias ou não-tarifárias.
Alguma chance de que a Rodada Doha termine em um "triângulo de Amorim"? Não parece provável. A União Européia e os EUA relutam muito em oferecer concessões expressivas no setor agrícola. Apesar disso, pressionam o Brasil e outros integrantes do G20 a aceitar cortes profundos em suas tarifas sobre importações de bens industriais e ampla abertura dos mercados de serviços. Se pudessem, gostariam de um "replay" da Rodada Uruguai.
Tudo indica que não haverá "replay". O Brasil e os outros países do G20 parecem preferir nenhum acordo a mais um mau acordo. Não podemos comprometer a indústria e o setor de serviços, em troca de algumas migalhas para o agronegócio exportador.
Depois de amanhã, começa a cúpula do G8, o grupo dos países mais desenvolvidos acrescido da Rússia. O impasse na OMC será objeto de discussão. África do Sul, Brasil, China, Índia e México estão convidados para o encontro. Veremos se -e em que termos- o impasse começará a ser rompido.
Um comentário final, de caráter mais pessoal. Não é a primeira vez que dedico um artigo a meu pai. O que me leva a fazê-lo hoje é o fato de ele ter sido o representante do Brasil na fase inicial da Rodada Uruguai, quando lutou como um leão, em aliança com a Índia, para evitar que as negociações tomassem o rumo que tomaram. Depois que ele foi substituído, veio a derrocada, e o Brasil acabou sucumbindo às pressões dos EUA e outros desenvolvidos. Essas e outras decepções com a política externa brasileira contribuíram bastante para a sua morte prematura, em 1994.
Hoje, o quadro é outro. Muitos dos que estão envolvidos nessa negociação, do nosso lado, tiveram a experiência direta ou, melhor dizendo, o trauma da Rodada Uruguai. Trabalharam com meu pai e se identificam com a sua maneira de pensar e atuar.
Por isso, digo, com orgulho: Paulo Nogueira Batista, tal qual El Cid, o Campeador, ganha batalhas mesmo depois de morto.


PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. , 51, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/ lsevier, 2005).
@ - pnbjr@attglobal.net


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Para Lula, proposta de reajuste de 16,7% não teve "seriedade"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.