São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Melhor que Lênin

RUBENS RICUPERO

O dano causado ao capitalismo americano pelas práticas inescrupulosas e os prejuízos acarretados a milhões de assalariados e acionistas são de tal gravidade que nem Lênin teria feito melhor. A opinião, quem sabe um tanto exagerada, provém não de um crítico da globalização, mas de um banqueiro de investimento, ex-sócio de Lazard Brothers, o até recentemente embaixador americano em Paris, Felix Rohatyn.
Após a série de falências espetaculares e escândalos bilionários que se seguiram ao estouro da bolha especulativa nos EUA, chegou a hora do ajuste de contas e dos processos judiciais. A Justiça americana, diferentemente da nossa e da maioria, tem o sentido das prioridades e é capaz de mover-se em semanas, não em anos. Não demorou muito para que alguns dos ases do mundo de negócios fossem apresentados às câmeras de TV, algemados e conduzidos à prisão. A rápida ação dos promotores está permitindo compreender pela primeira vez os mecanismos das falcatruas que alimentaram a bolha em torno da internet, das telecomunicações e da energia.
Quem tem se destacado nessas revelações é o procurador-geral de Nova York, Eliot Spitzer. Ele acaba de lançar ofensiva contra os bancos de investimento pela prática que os americanos chamam de "spinning", literalmente a "fiação" na tecelagem, que não sei se teria equivalente em português. Trata-se da operação pela qual os bancos alocavam lucrativas ações de novas empresas por eles lançadas a grandes executivos, os quais, em troca, reciprocavam, destinando aos bancos negócios milionários de suas companhias. O mecanismo operava por meio das chamadas IPOs, ou "initial public offerings", isto é, ofertas públicas iniciais de ações de empresas novas. Só que antes de serem abertas à subscrição do público essas ofertas eram, de início, reservadas a seleto grupo de privilegiados a preço de banana. Quase sempre tais ações disparavam a alturas estratosféricas no primeiro dia de Bolsa. Mais que depressa, os privilegiados se entregavam prazerosamente à prática do "flipping", literalmente dar piparotes numa bolinha de papel, quer dizer, passar adiante as ações aos trouxas enganados pelos analistas dos mesmos bancos que conduziam a operação.
Os bancos e corretoras que se distinguiram nesse gênero de IPOs foram a Goldman Sachs, o Crédit Suisse First Boston e a Salomon Smith Barney, parte do Citigroup. O Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados dos EUA constatou que 8 das 21 IPOs lançadas pela Goldman Sachs se valorizaram ao menos 173% no primeiro dia (de 1990 a 1998, a média de valorização das IPOs no primeiro dia era apenas de 15%). Um exemplo típico foi a firma eToys, lançada pela Goldman Sachs e que ganhou no primeiro dia (maio de 1999) mais de US$ 2 bilhões. Hoje, está falida. O procurador de Nova York acusa os executivos favorecidos pelas IPOs de telecomunicações da Salomon de terem lucrado US$ 1,7 bilhão vendendo as ações antes do colapso dos preços e quer recuperar essa dinheirama toda. Quem pagou o pato foi, como sempre, o investidor comum. Das 21 firmas lançadas pela Goldman, 16 perderam ao menos 89% do valor e várias estão falidas. Das 15 manejadas pelo Crédit Suisse First Boston, todas perderam 85% ou mais e diversas também faliram.
Para dar tempo às ratazanas de completar o "flipping", os analistas continuavam a recomendar ações prestes a naufragar. Das 36 ações recomendadas entre 1998 e 2002 por Jack Grubman, o astro dos analistas de telecomunicações da Salomon, 16 faliram, inclusive WorldCom e Global Crossing. Como "castigo", o analista recebeu em média US$ 20 milhões por ano, em compensação por ter ajudado a gerar US$ 1,1 bilhão para sua firma. O procurador revelou que, num seminário sobre as "melhores técnicas", em janeiro de 2000, os analistas da empresa receberam treinamento para "manipular" modelos financeiros capazes de produzir US$ 1 bilhão em faturamento adicional e gordas comissões para os analistas. Na correspondência interna, esses supostos técnicos objetivos referiam-se às ações por eles recomendadas aos clientes como "cachorros" ou "pedaços de m..."!
Esses fatos edificantes projetam luz estarrecedora sobre a banda podre desse mercado a cuja misericórdia e compreensão nossos dirigentes entregaram o Brasil de pés e mãos atados. Em começos de agosto, ao participar de seminário patrocinado por "O Estado de S.Paulo" e "The Wall Street Journal", denunciei essas e outras práticas dos analistas e das agências de avaliação de crédito, especialmente em relação aos juízos sobre o Brasil. Como era de esperar, discordaram frontalmente de mim dois dos painelistas, um da Goldman Sachs e o outro da Merrill Lynch... Os adeptos do fundamentalismo do mercado gostam de atribuir-lhe todos os melhores atributos humanos e, de lambuja, alguns divinos: onipotência, onisciência, infalibilidade. Só se esquecem de exigir que o mercado tenha um mínimo de vergonha na cara, que respeite, se não os Dez Mandamentos, ao menos o Código Penal.
Na falta desses requisitos, os americanos, que podem ter todos os defeitos, mas sabem agir decisivamente quando reconhecem um problema, não demoraram em aprovar a Lei Sarbanes-Oxley, de 1º de julho. Se tiver ocasião, voltarei a tratar dessa lei, que pode ter sérias implicações para nós e outros países mais condescendentes nessa matéria de proteger o interesse dos acionistas. Basta-me dizer aqui que a lei é uma tijolada para executivos e contadores fraudulentos, que arriscam pegar até 20 anos de prisão firme.
Mesmo assim, não será fácil reconstruir a confiança em mercados que se revelaram indignos e traiçoeiros dos 79 milhões de americanos possuidores de ações (eram 42 milhões em 1983). Essa perda de confiança é um dos fatores centrais da atual crise que vive a economia dos EUA. Ela mostra que nem a economia, nem os mercados, nem muito menos os governos podem ser neutros ou hostis aos valores morais. Tanto os governos como os mercados têm necessidade de uma base moral para que a economia funcione adequadamente. Os mercados acabam destruídos quando dominados por ladravazes, biltres e gatunos disfarçados de analistas ou banqueiros da mesma forma que os governos terminam mal quando caem nas mãos de bandidos e corruptos. Os que acham o pecado um conceito superado deveriam saber que estava já tudo contido nos Dez Mandamentos.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

E-mail -
rubensricupero@hotmail.com



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