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OPINIÃO ECONÔMICA
A nova esquerda neoburguesa
PAULO RABELLO DE CASTRO
Procurando no "Aurélio" a
definição de "burguês", achei
o seguinte: "1) Indivíduo que se
estabeleceu nos burgos, (...) que se
caracterizava pelas suas atividades lucrativas e por não exercer
trabalho braçal ou artesanal".
("Novo Dicionário Básico Folha/
Aurélio", pág. 108).
A referência histórica sobre a
aparição de uma classe economicamente diferenciada nas vilas
européias, ao fim da Idade Média, guarda um significado bastante atual para a estratificação
da sociedade brasileira contemporânea, com especial atenção ao
fenômeno produzido pela política
monetária "de estabilização"
após a introdução do Real como
moeda, em julho de 94.
Em 1º de julho deste ano, estaremos chegando ao nono ano de
"estabilização" da moeda, ou seja, teremos consumido 3.285 dias
no esforço de encontrar um equilíbrio macroeconômico entre estabilidade e crescimento da renda
e do emprego.
A novidade política é que, neste
momento, não é mais um governo de inclinação conservadora
que dirige o país, mas um partido,
ou conjunto de partidos, de definição esquerdista. No entanto a
política monetária de "estabilização" prossegue na mesma toada:
juros altos, ou muito altos, seriam
a boa receita para obter ou recuperar estabilidade, segundo a
equipe do novo governo, condição
básica para, um dia, poder pensar
em alcançar crescimento sustentado.
Estaríamos diante de uma nova
versão da antiga política neoliberal dos oito anos precedentes.
Agora temos a esquerda neoliberal -ou, para ser historicamente
correto, a esquerda neoburguesa.
Esse fenômeno político-social
da confluência dos interesses da
alta e média burguesias do Brasil
atual com os ditames econômico-financeiros do novo governo
constitui uma reminiscência contemporânea dos antigos acordos
entre o rei e a camada economicamente emergente das sociedades pós-medievais. O que diferencia o caso brasileiro seria que nem
estamos saindo de uma Idade
Média (ou será que estamos?)
nem tampouco os resultados desse pacto entre o rei e a burguesia
produzirão os mesmos resultados
de desenvolvimento a longo prazo, como ocorreu na Europa renascentista.
Temo que a nova esquerda neoburguesa esteja no pacto equivocado e explico o porquê. O pacto
brasileiro pós-Plano Real está baseado no esquema de absurda
transferência de recursos financeiros do Estado (ou seja, do
"rei") para os detentores da lucrativa atividade de emprestar dinheiro ao próprio governo, por
meio de fundos de investimento
financeiro, assim obtendo-se ganhos expressivos de renda sem o
esforço de engajamento num trabalho "industrial" -que, na Idade Média, era o trabalho braçal
ou artesanal.
Os números não mentem. Desde 1995 até hoje, a produção nacional real cresceu apenas 2% ao
ano, enquanto o acréscimo financeiro real, embutido nos fundos
de investimento, expandiu-se a
nada menos que 15% ao ano. Tal
explosão dos fundos de investimento não seria necessariamente
ruim; seria, aliás, muito bem-vinda se a contrapartida, do lado dos
ativos, fosse em financiamentos
ao setor privado produtivo. Sabemos, contudo, que não foi assim
que aconteceu. O crédito às atividades produtivas, pelo contrário,
minguou (!) em relação ao PIB.
Os fundos financeiros detidos pela população aplicadora carregam predominantemente dívida
do governo -esta, sim, explosiva.
Não tenhamos a menor dúvida
disso: hoje, como ontem, a título
de "estabilizar" a moeda e deter a
inflação, o governo opera uma
megatransferência de renda das
classes operosas e operárias para
as classes usufrutuárias de rendas
financeiras.
Longe de condenar os que poupam, apenas porque poupam. O
Brasil precisa de poupança como
nunca. Porém o lastro dessa poupança, quando é quase só dívida
de governo, compromete a qualidade dessa poupança. Pior ainda
é quando o alto risco expresso em
altas taxas de juros condena o governo a virar refém do "mercado". Todo o esforço fiscal do governo, agora agigantado pela
promessa de aumento da carga
tributária, é canalizado a remunerar aplicações financeiras. O
burguês financeiro de hoje é o
usufrutuário da política da esquerda neoburguesa (devo a conceituação histórica deste texto a
Waldemar Sandes Milagres).
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br
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