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São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A nova esquerda neoburguesa

PAULO RABELLO DE CASTRO

Procurando no "Aurélio" a definição de "burguês", achei o seguinte: "1) Indivíduo que se estabeleceu nos burgos, (...) que se caracterizava pelas suas atividades lucrativas e por não exercer trabalho braçal ou artesanal". ("Novo Dicionário Básico Folha/ Aurélio", pág. 108).
A referência histórica sobre a aparição de uma classe economicamente diferenciada nas vilas européias, ao fim da Idade Média, guarda um significado bastante atual para a estratificação da sociedade brasileira contemporânea, com especial atenção ao fenômeno produzido pela política monetária "de estabilização" após a introdução do Real como moeda, em julho de 94.
Em 1º de julho deste ano, estaremos chegando ao nono ano de "estabilização" da moeda, ou seja, teremos consumido 3.285 dias no esforço de encontrar um equilíbrio macroeconômico entre estabilidade e crescimento da renda e do emprego.
A novidade política é que, neste momento, não é mais um governo de inclinação conservadora que dirige o país, mas um partido, ou conjunto de partidos, de definição esquerdista. No entanto a política monetária de "estabilização" prossegue na mesma toada: juros altos, ou muito altos, seriam a boa receita para obter ou recuperar estabilidade, segundo a equipe do novo governo, condição básica para, um dia, poder pensar em alcançar crescimento sustentado.
Estaríamos diante de uma nova versão da antiga política neoliberal dos oito anos precedentes. Agora temos a esquerda neoliberal -ou, para ser historicamente correto, a esquerda neoburguesa.
Esse fenômeno político-social da confluência dos interesses da alta e média burguesias do Brasil atual com os ditames econômico-financeiros do novo governo constitui uma reminiscência contemporânea dos antigos acordos entre o rei e a camada economicamente emergente das sociedades pós-medievais. O que diferencia o caso brasileiro seria que nem estamos saindo de uma Idade Média (ou será que estamos?) nem tampouco os resultados desse pacto entre o rei e a burguesia produzirão os mesmos resultados de desenvolvimento a longo prazo, como ocorreu na Europa renascentista.
Temo que a nova esquerda neoburguesa esteja no pacto equivocado e explico o porquê. O pacto brasileiro pós-Plano Real está baseado no esquema de absurda transferência de recursos financeiros do Estado (ou seja, do "rei") para os detentores da lucrativa atividade de emprestar dinheiro ao próprio governo, por meio de fundos de investimento financeiro, assim obtendo-se ganhos expressivos de renda sem o esforço de engajamento num trabalho "industrial" -que, na Idade Média, era o trabalho braçal ou artesanal.
Os números não mentem. Desde 1995 até hoje, a produção nacional real cresceu apenas 2% ao ano, enquanto o acréscimo financeiro real, embutido nos fundos de investimento, expandiu-se a nada menos que 15% ao ano. Tal explosão dos fundos de investimento não seria necessariamente ruim; seria, aliás, muito bem-vinda se a contrapartida, do lado dos ativos, fosse em financiamentos ao setor privado produtivo. Sabemos, contudo, que não foi assim que aconteceu. O crédito às atividades produtivas, pelo contrário, minguou (!) em relação ao PIB. Os fundos financeiros detidos pela população aplicadora carregam predominantemente dívida do governo -esta, sim, explosiva.
Não tenhamos a menor dúvida disso: hoje, como ontem, a título de "estabilizar" a moeda e deter a inflação, o governo opera uma megatransferência de renda das classes operosas e operárias para as classes usufrutuárias de rendas financeiras.
Longe de condenar os que poupam, apenas porque poupam. O Brasil precisa de poupança como nunca. Porém o lastro dessa poupança, quando é quase só dívida de governo, compromete a qualidade dessa poupança. Pior ainda é quando o alto risco expresso em altas taxas de juros condena o governo a virar refém do "mercado". Todo o esforço fiscal do governo, agora agigantado pela promessa de aumento da carga tributária, é canalizado a remunerar aplicações financeiras. O burguês financeiro de hoje é o usufrutuário da política da esquerda neoburguesa (devo a conceituação histórica deste texto a Waldemar Sandes Milagres).


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br


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