São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Outra vez salvos pelo gongo

LUCIANO COUTINHO

Muitos analistas têm advertido para os graves riscos contidos na reversão de uma vigorosa bolha cíclica tal como a observada nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 90. Uma deflação aguda de preços no mercado de ativos poderia ter deflagrado processos de enorme potencial destrutivo na economia. Felizmente isso foi, até agora, evitado. A reversão do ciclo americano veio no final de 2000 com uma forte queda do investimento privado, altamente concentrado no setor de tecnologias da informação. Como é sabido, uma reversão desse tipo leva a uma contração dos lucros nos setores que lideram a expansão num curto intervalo de tempo. Isso afetou particularmente as empresas da Nasdaq cujo índice de preços iniciou uma derrocada, saindo de mais de 5.000 pontos para os 1.373 pontos de sexta-feira. O risco mais grave, porém, teria sido uma contaminação virulenta do Dow Jones. Uma queda abrupta e mais acentuada desse índice poderia ter levado a uma súbita retração do gasto das famílias e das empresas, criando uma espiral deflacionária de enormes proporções.
Em meados de 2001, essa ameaça estava latente. Evidências disso: quedas pronunciadas da atividade industrial e aumento da inadimplência das empresas e das famílias. Outro risco grave estava relacionado com o comportamento dos investidores estrangeiros. Diante de uma forte deflação de ativos, não haveria como manter o dólar sobrevalorizado. O desafio era tremendo. O Fed tinha de segurar a queda de preços nos mercados de ativos, impedir a retração forte do consumo e evitar a desvalorização abrupta do dólar.
O presidente do Fed, Alan Greenspan, conduziu o barco com inegável maestria. Fez reduções sucessivas da taxa de juros em momentos certos e em doses precisas, proporcionou oferta abundante e oportuna de liquidez para facilitar as desalavancagens e exerceu sua credibilidade para induzir as expectativas do mercado. De outro lado, a veloz reversão do superávit fiscal para uma posição deficitária (de US$ 127 bilhões positivos em 2001 para cerca de US$ 150 bilhões negativos em 2002) provocada pelos cortes de impostos e pelo aumento de gastos militares promovidos pelo governo Bush e pela queda pró-cíclica das receitas tributárias também contribuiu para evitar a deflagração de um processo recessionista grave. Os instrumentos anticíclicos, fiscal e monetário, foram acionados com presteza e no limite.
No primeiro trimestre deste ano, tudo parecia sob controle. A expectativa era que a economia americana logo viesse a liderar uma reativação global. Nos últimos três meses, porém, verificou-se impressionante deterioração da confiança. A recuperação econômica dos EUA perdeu gás, o preço do petróleo repicou transitoriamente por causa da guerra na Palestina e dos conflitos políticos na Venezuela, as Bolsas foram abatidas por sucessivas fraudes contábeis (como nos casos da Enron e da WorldCom), as taxas de risco dos países emergentes (especialmente os da América Latina, com o Brasil à frente) voltaram a subir. A onda de pessimismo começou a minar o fluxo de capitais para o mercado americano e o dólar começou a se depreciar ante o euro e o iene.
Dado o imenso déficit externo americano (US$ 420 bilhões), a redução dos influxos de capitais tende a provocar tensões muito perigosas. Investidores japoneses e europeus detêm nos Estados Unidos uma parcela muito relevante dos títulos públicos, bônus privados e ações -uma fuga maciça por parte desses investidores pode causar a desvalorização abrupta do dólar, redundando em gravíssimas perdas patrimoniais. A deflação abrupta da riqueza provocaria recessão nos Estados Unidos; uma apreciação ainda mais forte do euro e do iene afetaria as respectivas exportações e bloquearia a reativação econômica da Europa e do Japão. Os riscos pululam. Este cenário é um pesadelo para o G3.
Essa conjuntura muito delicada nos mercados desenvolvidos termina por suavizar temporariamente as coisas para nós. O gongo nos salva outra vez. Em outubro de 1998, uma situação de grave crise financeira decorrente da quase falência de um grande fundo americano de investimento (o LTCM) tornou imperioso evitar uma quebra simultânea do Brasil. Nesta semana, a viagem do dr. Armínio Fraga aparentemente logrou reverter a posição hostil do Tesouro dos Estados Unidos. Houve sinalização deste e do FMI à banca e aos mercados para restaurar o crédito ao país. Resta esperar as consequências positivas, mas, para isso, será necessário que haja algum apoio financeiro efetivo ao Brasil. Com o governo vulnerável a pressões (lembrete: concorrência da FAB), a nossa fragilidade externa vai ser, mais uma vez, remendada a esparadrapo. Menos ruim. Mas o abacaxi ácido passa para 2003.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).

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