São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2008

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ARTIGO

O capitalismo e a compressão de crédito

SAMUEL BRITTAN
DO "FINANCIAL TIMES"

Qual é o efeito da grande compressão de crédito sobre os argumentos em defesa do capitalismo competitivo? Muitos políticos de esquerda revisionistas não só colocaram suas carreiras em risco ao defender as forças de mercado, mas, para fazê-lo, tiveram de ejetar as convicções que defenderam por toda a vida. Será que agora terão de se virar de cabeça para baixo e afirmar que estavam errados? E, caso o façam, para onde poderiam se voltar?
Mesmo que no final venhamos a sofrer não mais que uma das recessões médias do período posterior à Segunda Guerra Mundial, persistirá a impressão de que escapamos por pouco, devido à disposição de líderes como o secretário do Tesouro norte-americano, Henry Paulson, de não só abandonar os princípios de mercado como assumir riscos imprudentes para resgatar as entidades corporativas dos Estados Unidos. Não vai haver uma "alegre manhã da confiança" para os princípios de livre mercado, e por um bom período.
É por motivos como esses que recebo de maneira positiva um livro curto e bem escrito, "The Origin of the Financial Crises" [A Origem das Crises Financeiras], de George Cooper, que se esforça por correlacionar questões financeiras aparentemente esotéricas às teorias econômicas elementares. Ele cita Paul Samuelson, autor do manual de economia provavelmente mais vendido do século 20, "Economics: An Introductory Analysis" [Economia: uma Análise Introdutória]. O professor Samuelson oferece um panorama introdutório simples sobre o sistema de concorrência do livre mercado. Se surgir um dilúvio de novas encomendas de, digamos, sapatos, o preço do produto subirá e mais pares serão produzidos. Caso haja excesso de chá, o preço será reduzido, as pessoas beberão mais e os produtores reduzirão sua oferta. "O equilíbrio entre oferta e procura será restaurado."
A crítica de Cooper fica reservada a uma sentença que parece esquecida no final do relato de Samuelson. "Aquilo que se aplica ao mercado de bens de consumo se aplica igualmente ao mercado de fatores de produção, tais como mão-de-obra, terras e insumos de capital." Cooper se concentra no capital, o mercado do qual ele acredita ser completamente diferente do mercado de bens de consumo. Eu expressaria de maneira ligeiramente diferente a distinção crucial: entre produtos que têm valor em si -"valor de uso", no jargão marxista- e produtos cujo valor depende no todo ou em parte de seu futuro valor de revenda, e que ficam portanto propensos a bolhas.
A principal alegação de Cooper é que os mercados de ativos são especialmente vulneráveis a ciclos de contração e expansão e que eles representam portanto a verdadeira força desestabilizadora no sistema financeiro, enquanto os bancos centrais concentram suas atenções nos preços ao consumidor. Alguma coisa chamada "a hipótese dos mercados eficientes" aparece e reaparece ao longo do livro de Cooper como a cabeça do rei Charles. Essa hipótese terminou por florescer na forma de uma crença em que os ativos, sempre e em toda parte, têm seus preços corretamente determinados.
Vou aceitar a palavra de Cooper quanto ao fato de que a hipótese dos mercados eficientes embasa os modelos preparados pelos cientistas financeiros que trabalham para os bancos e fundos de hedge. E, em forma diluída, ela pode também embasar a relutância dos modernos bancos centrais para agir de forma a conter bolhas nos ativos. Isso contrasta com o ditado de William McChesney Martin, um antigo chairman do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), segundo o qual o papel do Fed era "levar a bebida embora bem quando a festa começa a se animar". As palavras dele eram sem dúvida metafóricas demais para a era que vivemos, mas é possível que estivesse certo.

Doutrina Cooper
A mais inovadora doutrina de Cooper é a de que os investidores não precisam ser irracionais para gerar bolhas. Eles simplesmente não dispõem do conhecimento requerido pela hipótese dos mercados eficientes. Mas será que essa ignorância não representaria um obstáculo para ações oficiais quanto aos preços dos ativos, que alguns gostariam de ver suplementando e outros substituindo totalmente as metas quanto a preços ao consumidor?
No entanto, por mais difícil que venha a se provar, a reconsideração que deve se seguir à compressão de crédito certamente abrirá mais espaço aos preços dos ativos entre os objetivos dos bancos centrais, ainda que a custo de um certo desmazelo intelectual.
Os leitores não se surpreenderão ao descobrir que Cooper atribui as atuais dificuldades ao rápido crescimento no crédito encorajado pela política de dinheiro ultrabarato instituída pelo Fed alguns anos atrás. É interessante que um estudo conduzido por Noureddine Krichene para o FMI (Fundo Monetário Internacional) argumente, de maneira convincente, que, no período entre 2003 e 2007, não houve um choque confinado ao petróleo ou qualquer outra commodity, mas um aumento paralelo nos preços de quase todas as commodities. Durante esse período, os preços ao consumidor se mantiveram controlados, o que gerou uma falsa sensação de segurança.
Agora chegou a hora de pagar, com aquela combinação de inflação e recessão que representa o pesadelo dos bancos centrais. O autor do estudo do FMI não duvida de que estamos vendo "o efeito retardado de uma política monetária demasiadamente expansiva, que gerou uma vasta expansão de todos os tipos de crédito, desconsiderando a questão da qualidade creditícia". Eu ainda me preocupo com quais teriam sido os efeitos de uma política de maior aperto diante dos grandes superávits da China e da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo).
Mas pode bem ser que os Estados Unidos continuassem a ser o consumidor mundial de último recurso mesmo sem medidas de estímulo do Fed.
Para retornar à questão mais ampla quanto ao capitalismo competitivo com a qual comecei, nada do que aconteceu sugere que os governos são eficientes em selecionar quem deve sair vitorioso, que o comércio internacional é ruim ou que as escolhas dos consumidores deveriam ser desconsideradas. Mas é bom ter em mente o ditado de Keynes, de que "o dinheiro não administra a si mesmo". O mesmo vale para o crédito.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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