São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Não baixem a guarda!

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Em resposta ao artigo da semana passada, os leitores acudiram em massa e me deram uma tremenda injeção de ânimo. Estou respondendo às mensagens aos poucos. Continuo pensando, porém, naquele leitor que se referiu à minha "obstinação". Ele poderia ter falado em "obsessão". Teria sido menos gentil, porém mais realista.
Obsessão, como se sabe, é obstinação com um toque de exagero doentio. Esse toque não é necessariamente negativo, em especial quando o que está em discussão é a realidade econômica brasileira. O exagero ajuda a vencer as forças subjetivas e objetivas da inércia. E, depois, quem disse que essa realidade não é, em si mesma, doentia, cronicamente doentia até?
Dei essa pequena volta para retomar um tema que anda meio esquecido: a taxa de câmbio. O câmbio já foi objeto de tratamento obsessivo nesta coluna. No passado recente, entretanto, a evolução dos acontecimentos tem sido tranqüilizadora. Tornou-se claro que a passagem para a flutuação cambial e a depreciação do real desde 1999, e particularmente desde 2002, trouxeram mais benefícios do que custos. O impacto sobre a inflação, embora não desprezível, foi bem menor do que se previa. E as exportações responderam bem mais do que se esperava.
Mas obsessivo é como alcoólatra: nunca fica inteiramente curado. A menor provocação pode reacender o impulso obsessivo. A provocação, no caso, é a nova fase de valorização do real em relação ao dólar. Alguém poderia perguntar: se as exportações continuam crescendo e o superávit comercial excede US$ 30 bilhões em 12 meses, por que se preocupar?
Esse é o argumento do governo. O raciocínio parece ser o seguinte: o superávit externo está acima do esperado, mas a inflação também. Valeria a pena então permitir certa apreciação cambial para ganhar alguns pontos em termos de inflação.
Raciocínio míope. Na questão cambial (não só no combate à inflação), é preciso olhar para a frente e agir de forma preventiva. Que bom seria se o Banco Central e a Fazenda atuassem na área externa com o mesmo cuidado obsessivo que aplicam ao sistema de metas para a inflação!
Há motivos de sobra para não baixar a guarda na área cambial. Menciono apenas alguns, de forma telegráfica.
1) Como o passivo externo é muito elevado, as despesas líquidas com juros da dívida, remessas de lucros e outras rendas do capital estrangeiro superam os US$ 20 bilhões por ano.
2) Como não há administração adequada do perfil da dívida privada, as amortizações de principal também pesam bastante e devem alcançar mais de US$ 40 bilhões em 2004.
3) A conta de capitais do balanço de pagamentos permanece excessivamente aberta; o problema foi agravado por decisões recentes que facilitaram o pagamento antecipado de dívidas externas.
4) As reservas internacionais líquidas do Brasil continuam insuficientes, inferiores aos níveis registrados antes da crise cambial de 2002.
Nessa situação, intervenções do Banco Central no mercado de câmbio, comprando moeda estrangeira, seriam duplamente convenientes: reforçariam as reservas e evitariam a valorização exagerada do real.
Mais do que isso: o Banco Central deveria calibrar suas intervenções de maneira a induzir alguma depreciação. A posição da balança comercial não é tão tranqüila quanto parece. Refletindo a expansão da economia e a própria valorização do real, o ritmo de crescimento das importações começa a ultrapassar o das exportações. O desempenho das exportações continua forte, mas se deve em grande parte a circunstâncias internacionais que podem não durar (aumento dos preços de diversos produtos exportados pelo Brasil, demanda externa aquecida, crescimento excepcional de alguns parceiros comerciais, notadamente China e Argentina). As exportações também podem ser prejudicadas por restrições internas, em especial pelas notórias deficiências de infra-estrutura (estradas, portos, energia etc.) e o progressivo esgotamento da capacidade ociosa nos setores mais voltados para o mercado externo.
Mais uma razão para não descuidar do câmbio e não subordiná-lo (outra vez!) a uma política míope de combate à inflação. A melhor maneira de estimular o investimento em setores que exportam e competem com importações é manter uma taxa de câmbio competitiva e sinalizar, de maneira clara, que o governo não cairá novamente na tentação de permitir apreciações oportunistas da moeda nacional.
Infelizmente, a equipe econômica parece partir do pressuposto ingênuo de que a flutuação cambial sempre corrige automaticamente os desequilíbrios externos. Em situações de estresse, contudo, esse ajustamento automático tende a não funcionar. A depreciação cambial se auto-alimenta, convertendo-se em fator de desestabilização. Recorde-se, por exemplo, da experiência traumática de 2002!
Mesmo que a tensão não chegue a se tornar tão aguda, um surto de depreciação cambial pressiona a taxa de inflação e, ao distanciá-la das metas oficiais, costuma levar o Banco Central a aumentar a taxa de juro, com efeitos danosos sobre a produção e o emprego.
Quem nos obriga a repetir, obsessivamente, os mesmos erros?


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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