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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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LUÍS NASSIF

O perfume da nossa rua

Recebo e-mail de Teresa. Apenas Teresa. Não a conheço. Ela mora há 41 anos na rua Rio de Janeiro, em Poços de Caldas, aonde chegou com cinco anos e de onde me mudei faz 33. Há três semanas, sua filha chegou da faculdade e lhe disse que a rua tinha perfume de festa.
A Rio de Janeiro vai dar no largo do São Benedito, onde ficava a nossa casa. As primeiras lembranças eram de casas sem grades, ruas de terra formando um todo único com o largo, no meio do qual estava a igrejinha. A subida mesmo tinha dois quarteirões de cascalho, ótimos para deslizarmos em tábuas ou em carrinhos de rolimã.
Atrás da nossa casa, dando para a rua Prefeito Chagas e para os fundos da fábrica de doces Mesquita, do meu tio Léo, havia o morro, nosso lugar predileto para brincar de caubói. Lembro-me dos irmãos Belico -o Lineu e o Paim- indo brincar com a molecada de lá. Eles tinham o seu morro, o da Caixa-D'Água, que lhes dava o direito de saírem à frente dos caubóis como batedores. O morro da Caixa-D'Água era infestado de lagartixas, que nossa imaginação transformava em dragões perigosos, os quais enfrentávamos com machadinhas atiradas em seus rabos. O Lineu explicava que não tinha problema, pois o rabo nascia de novo, o que aplacava nossa culpa.
Já no morro da Rio de Janeiro com a prefeito Chagas, o morro da fábrica, a missão de batedor era minha. Ficava preocupado porque não conhecia as brechas do morro a ponto de assumir tamanha responsabilidade.
Depois veio o calçamento. No início, era de paralelepípedos, que eu não gostava porque fazia trepidar a bicicleta. Mais tarde, cada morador tratou de providenciar a sua calçada, e a Rio de Janeiro foi se modernizando.
O morro foi demolido para dar passagem a uma rua que uniu a Rio de Janeiro à Prefeito Chagas. O largo foi cercado primeiro e calçado depois. Perdeu as características da minha infância, mas ganhou em formosura. Os paralelepípedos foram substituídos por asfalto.
Àquela altura, lá por volta de 1967, eu já estudava em São João da Boa Vista, mas a cabeça estava longe, deixara de acompanhar os movimentos de Poços, com aquele senso de detalhes que apenas cabeças de criança conseguem captar. Por isso perdi um bom momento, que foi o processo de formação da comunidade da rua Rio de Janeiro.
Conhecia os vizinhos próximos, não todos mais, depois que a cidade cresceu para aqueles lados. Mas o ponto de inflexão que marcou o início da comunidade me foi contado pela Teresa no seu e-mail. Com o asfalto, veio para o morro a velocidade dos carros da cidade. A nova rua aberta tornou-se perigosa, uma ladeira brusca que desembocava repentinamente na Rio de Janeiro.
Aí, conta-me Teresa, meu pai fez um movimento e conseguiu da Câmara de Vereadores uma lei que instituía mão única na rua, para proteção das crianças. Mas a cidade não tinha o costume da mão única. Os motoristas continuaram trafegando na contramão, valendo-se da falta de policiamento e, principalmente, da falta de prática dos guardas em multá-los. Afinal, o Brasil é condescendente e, em cidade pequena, todos somos amigos.
Foi então que meu pai convocou os moradores do início da subida, que ficava um quarteirão abaixo da nossa casa, para ensinar-lhes princípios de cidadania. Eles deveriam ficar atentos, especialmente as crianças e os velhos, que ficavam mais tempo na rua. Quando algum motorista desavisado ou temerário ameaçasse invadir a contramão, deveriam formar um cordão e impedi-lo.
Conta a Teresa: "E ele vinha devagar, muito devagar com sua Veraneio, só para esperar a turma da rua que ele já tinha treinado para esticar a corda e gritar: contra-mão! Éramos grupos que se revezavam, ninguém perdia o horário".
Por isso, quando a filha da Teresa chega da faculdade e diz que a rua tem perfume de festa, creio que, lá atrás, havia um sentimento de cidadania que foi plantado, regado e que floresceu.

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