São Paulo, sábado, 15 de março de 1997.

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OPINIÃO ECONÔMICA
No coração das trevas

RUBENS RICUPERO
Revi, semanas atrás, "Apocalypse Now" e o documentário que descreve como Coppola realizou o filme nas Filipinas numa atmosfera de delírio quase raiando a obsessão.
Inspirado na novela de Conrad sobre a degenerescência de um agente da Companhia do Congo na selva africana, a obra transplanta a ação para o Camboja e transforma Kurtz num Marlon Brando patético e aterrorizante no papel do coronel americano das forças especiais enlouquecido pela onipotência do mal.
Na época, muita gente ficou sem saber o que pensar diante desse estudo magistral de todas as gradações da escuridão e da noite, a de fora e a que habita no coração do homem.
Hoje se reconhece que foi a expressão definitiva da guerra do Vietnã no cinema. O horror, última palavra de Kurtz ao morrer, o horror do abismo de crueldades sem sentido estava muito além de qualquer banal explicação do inexplicável, de todo ensaio linear de descrição.
A intuição das profundezas permitiu a Conrad e Coppola perceber que a loucura só pode ser traduzida pela loucura, que apenas o terror do pesadelo é capaz de captar o mistério da iniquidade.
Conrad teve a intuição do horror do colonialismo; Coppola, o da guerra do Vietnã. A realidade foi, porém, muito mais longe. O que ambos imaginaram parece imagem desbotada ao ser comparada com o horror de verdade, o que aconteceu no Camboja.
Em Phnom Penh, onde acabo de chegar, o horror do colonialismo e o da guerra do Vietnã se combinaram para escrever um dos mais tenebrosos capítulos da história da desumanidade.
Num país pequeno, quase idílico, 500 mil foram mortos pelas bombas americanas, mais maciças do que as despejadas sobre o Japão durante toda a guerra. Dos sobreviventes, mais de 1,5 milhão foi massacrado pelo Khmer Vermelho. Vinte por cento da população, uma pessoa em cada cinco, pereceu em meio à indiferença do mundo.
Um dos ministros com quem conversei me disse, com ironia negra, que a maior contribuição da cultura ocidental ao Camboja havia sido o curso de doutorado na Sorbonne dos autores de uma das mais monstruosas teses da história da loucura humana. Outro me comentou que, em realidade, o maoísmo e a Revolução Cultural só foram levados às últimas consequências no Camboja.
Enquanto Stálin pensava construir um futuro radioso, o Khmer Vermelho pretendia retroceder a um passado de mitologia, uma sociedade agrária, auto-suficiente e sem classes. Para isso, era preciso extirpar sem piedade todo verniz de modernidade e urbanização, todo resquício de civilização e cultura.
Quando o banho de sangue acabou, haviam sobrado 6,5 milhões de pessoas, dentre as quais apenas 64 "intelectuais", assim considerados os que tinham alguma educação universitária.
Diante da enormidade do que sucedeu aqui, como negar o poder destrutivo das idéias enlouquecidas? A deturpação do marxismo, por exemplo, passando do sonho de criar um homem novo a pretexto de atrocidades que destruíram dezenas de milhões de vidas, constitui certamente uma das grandes tragédias deste triste século.
O resultado é que, no centro mesmo da área que mais cresce no mundo, entre a China, a Tailândia, a Malásia, Cingapura e Indonésia, o Camboja se descobre, após tanto sofrimento, como um dos países mais desesperadamente pobres do mundo.
Como explicar que a Tailândia vizinha, herdeira da mesma cultura budista, de instituição monárquica parecida, nunca tenha sido colônia de ninguém, sabendo aliar-se pragmaticamente ora aos ingleses, ora aos japoneses, ora aos americanos, e se desenvolve, há mais de três décadas, com uma das mais elevadas e estáveis taxas de crescimento?
Algo se deve à qualidade da liderança política, sua moderação, seu senso de oportunidade. Muito, contudo, é fruto ainda da guerra do Vietnã.
O Camboja teve o infortúnio de estar no lugar errado, bem no meio do teatro da guerra. Acabou, assim, como vítima de uma briga que não era sua e uma das primeiras peças a tombar no jogo de dominó dos adversários.
O irônico é que as outras supostas peças converteram-se hoje nas locomotivas do desenvolvimento do Sudeste da Ásia, e o Vietnã é que se prepara para tomá-las como modelo, e não o contrário.
A catástrofe humana do Camboja é uma prova adicional de que, uma vez posto em marcha, o ciclo atroz da guerra só se detém após ter triturado milhões de inocentes. E que a brutalidade é sempre capaz, mesmo numa cultura tolerante como o budismo, de escancarar o abismo que existe no coração de cada homem.


Rubens Ricupero, 59, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.

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