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OPINIÃO ECONÔMICA
Blefe nuclear?
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
A tendendo a apelos, volto
ao tema nuclear. Vou
apoiar-me no artigo "Blefe nuclear", publicado por Roberto
Mangabeira Unger nesta Folha
anteontem.
Antes, porém, queria dizer que
gosto muito de Mangabeira Unger. É um brasileiro "sui generis".
Como todos nós, brasileiros, ele
está sempre aberto ao monólogo
-só que os seus monólogos são
geniais, lastreados em ampla cultura e pontuados por sentenças
lapidares e intuições fulminantes.
Outra peculiaridade sua: passou
a maior parte da vida nos Estados
Unidos e adquiriu forte sotaque.
Fala português com pronúncia de
americano. Não faz mal. Como
dizia Nelson Rodrigues, a maior
parte dos brasileiros adquire no
exterior uma forma muito pior de
sotaque: "O sotaque espiritual".
Sempre defendi Mangabeira
Unger contra os inúmeros e superficiais críticos do seu sotaque
físico e das suas idéias. E, no entanto (suspiro), creio ter detectado traços de "sotaque espiritual"
no artigo de terça-feira. Do alto
do seu Olimpo, em Harvard,
Mangabeira lançou várias "teses"
sobre a questão nuclear no Brasil.
Foi instigante e provocativo, tocou nos pontos nevrálgicos. Como
é do seu feitio, adotou um tom peremptório que às vezes intimida,
mas nem sempre convence.
Vejamos algumas dessas "teses". A preocupação dos EUA, garante Mangabeira, não é comercial, mas com poder e segurança.
O que Washington pretende, via
AIEA (Agência Internacional de
Energia Atômica), é restringir cada vez mais as possibilidades de
desenvolvimento e difusão de armamentos nucleares, e não espionar a nossa tecnologia de enriquecimento -"nada revolucionária", segundo ele.
A tese parece capenga. Uma
preocupação não exclui a outra.
Parece plausível a suposição de
que a motivação militar seja dominante, mas pergunto: com base
em que o nosso filósofo e professor
de direito afirma, categoricamente, que a tecnologia brasileira nada tem de revolucionário? Em se
tratando de um intelectual sofisticado, posso garantir que a sua
fonte não é algum desses físicos
nucleares tupiniquins, formato
quinta-coluna, que encontram
espaço na imprensa brasileira para fazer afirmações estapafúrdias
e levianas sobre tecnologia e política internacional.
Revolucionária ou não, uma
inovação tecnológica, especialmente em uma área como a nuclear, merece ser resguardada
-particularmente se nos custou,
como parece ser o caso, despesas
consideráveis e longos anos de
pesquisa e desenvolvimento. Não
é o caso do professor Mangabeira
Unger, mas, aos ingênuos (ou falsos ingênuos) que consideram
desprimoroso suspeitar que a
AIEA aceitaria ser manipulada
pelos Estados Unidos ou outras
potências, recomendo a leitura do
ensaio do embaixador José Mauricio Bustani sobre outra organização internacional voltada para
o desarmamento -a Opaq (Organização para a Proibição de
Armas Químicas).
O embaixador Bustani, diretor-geral da Opaq até abril de 2002,
quando foi destituído após pesada campanha do governo dos
EUA, revela nesse ensaio a insatisfação de Washington com a
sua recusa de fornecer aos representantes americanos acesso a informações sobre outros membros
da organização, fora dos mecanismos formalmente previstos. O
embaixador menciona também a
surpresa demonstrada por um titular de organização internacional assemelhada à Opaq, quando
lhe foi assegurado que a direção
geral da Opaq não dispunha de
mecanismos para compartilhar
com certos países "selecionados"
informações "específicas" a respeito de outros Estados-membros... (ver José Mauricio Bustani,
"O Brasil e a Opaq: Diplomacia e
Defesa do Sistema Multilateral
sob Ataque", Estudos Avançados,
vol. 16, número 42, setembro/dezembro 2002, www.usp.br/
iea/revista).
Outra tese do professor Mangabeira: não é consistente a atual
posição do Brasil, que, embora
signatário do TNP (Tratado de
Não-Proliferação Nuclear), resiste a assinar um protocolo adicional, prevendo inspeções mais amplas e rigorosas de instalações nucleares. Segundo o professor,
"quem participa de boa-fé do regime do tratado não tem por que
se opor a medidas complementares de vigilância".
Ora, ora, o TNP já é, em si mesmo, um tratado essencialmente
discriminatório. Consagra a existência de duas classes de signatários: a) as nações nuclearmente
armadas; e b) as nações não-nuclearmente armadas. As primeiras não precisam submeter suas
instalações de pesquisas militares
às salvaguardas, e mesmo as instalações de uso civil são inspecionadas apenas quando voluntariamente indicadas por esses países para tal fim. As segundas foram submetidas, desde a adesão
ao TNP, a inspeções detalhadas
em todas as suas instalações, segundo as regras previstas no tratado. Mais recentemente, a AIEA
vem pressionando os países signatários do TNP a assinar "protocolos adicionais", que reforçam e
aprimoram os controles. Muitos
assinaram, mas a maioria não. A
maior parte dos protocolos assinados ainda não entrou em vigor
(dados da AIEA, situação em 7 de
abril de 2004). Não há nada de inconsistente na decisão brasileira
de ater-se, por enquanto, aos
compromissos assumidos anteriormente sem aceitar novas obrigações.
A "tese" do professor Mangabeira equivale ao seguinte: já que
levamos um desaforo para casa,
assinando o TNP, por que não levar mais um, assinando o protocolo adicional?
Mas Mangabeira tem razão na
sua "tese" principal, que ele apresenta como "decisiva": o Brasil errou quando aderiu ao TNP em
1998. Um país que assina esse tratado se rebaixa de maneira ignominiosa.
Para que o leitor tenha uma
idéia do que representa o TNP,
lançado no final dos anos 60, reproduzo o seu artigo 6º: "Cada
parte desse Tratado compromete-se a entabular, de boa-fé, negociações sobre medidas efetivas para
a cessação em data próxima da
corrida armamentista nuclear e
para o desarmamento nuclear e
sobre um Tratado de desarmamento geral e completo, sob estrito e eficaz controle internacional". As potências nucleares têm
sido, como se sabe, extremamente
zelosas no cumprimento da sua
parte do TNP...
Esse já era o cenário quando o
governo Fernando Henrique Cardoso, contrariando as posições
defendidas consistentemente pelo
Brasil, resolveu entregar-se ao regime discriminatório desse acordo. O que ganhamos com isso?
Como observou o embaixador
Bustani, no ensaio acima citado,
"um simpático tapinha nas costas
dos Estados Unidos e de outros
defensores do Tratado...".
Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve
às quintas-feiras nesta coluna. É autor
do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
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