São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Blefe nuclear?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A tendendo a apelos, volto ao tema nuclear. Vou apoiar-me no artigo "Blefe nuclear", publicado por Roberto Mangabeira Unger nesta Folha anteontem.
Antes, porém, queria dizer que gosto muito de Mangabeira Unger. É um brasileiro "sui generis". Como todos nós, brasileiros, ele está sempre aberto ao monólogo -só que os seus monólogos são geniais, lastreados em ampla cultura e pontuados por sentenças lapidares e intuições fulminantes. Outra peculiaridade sua: passou a maior parte da vida nos Estados Unidos e adquiriu forte sotaque. Fala português com pronúncia de americano. Não faz mal. Como dizia Nelson Rodrigues, a maior parte dos brasileiros adquire no exterior uma forma muito pior de sotaque: "O sotaque espiritual".
Sempre defendi Mangabeira Unger contra os inúmeros e superficiais críticos do seu sotaque físico e das suas idéias. E, no entanto (suspiro), creio ter detectado traços de "sotaque espiritual" no artigo de terça-feira. Do alto do seu Olimpo, em Harvard, Mangabeira lançou várias "teses" sobre a questão nuclear no Brasil. Foi instigante e provocativo, tocou nos pontos nevrálgicos. Como é do seu feitio, adotou um tom peremptório que às vezes intimida, mas nem sempre convence.
Vejamos algumas dessas "teses". A preocupação dos EUA, garante Mangabeira, não é comercial, mas com poder e segurança. O que Washington pretende, via AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), é restringir cada vez mais as possibilidades de desenvolvimento e difusão de armamentos nucleares, e não espionar a nossa tecnologia de enriquecimento -"nada revolucionária", segundo ele.
A tese parece capenga. Uma preocupação não exclui a outra. Parece plausível a suposição de que a motivação militar seja dominante, mas pergunto: com base em que o nosso filósofo e professor de direito afirma, categoricamente, que a tecnologia brasileira nada tem de revolucionário? Em se tratando de um intelectual sofisticado, posso garantir que a sua fonte não é algum desses físicos nucleares tupiniquins, formato quinta-coluna, que encontram espaço na imprensa brasileira para fazer afirmações estapafúrdias e levianas sobre tecnologia e política internacional.
Revolucionária ou não, uma inovação tecnológica, especialmente em uma área como a nuclear, merece ser resguardada -particularmente se nos custou, como parece ser o caso, despesas consideráveis e longos anos de pesquisa e desenvolvimento. Não é o caso do professor Mangabeira Unger, mas, aos ingênuos (ou falsos ingênuos) que consideram desprimoroso suspeitar que a AIEA aceitaria ser manipulada pelos Estados Unidos ou outras potências, recomendo a leitura do ensaio do embaixador José Mauricio Bustani sobre outra organização internacional voltada para o desarmamento -a Opaq (Organização para a Proibição de Armas Químicas).
O embaixador Bustani, diretor-geral da Opaq até abril de 2002, quando foi destituído após pesada campanha do governo dos EUA, revela nesse ensaio a insatisfação de Washington com a sua recusa de fornecer aos representantes americanos acesso a informações sobre outros membros da organização, fora dos mecanismos formalmente previstos. O embaixador menciona também a surpresa demonstrada por um titular de organização internacional assemelhada à Opaq, quando lhe foi assegurado que a direção geral da Opaq não dispunha de mecanismos para compartilhar com certos países "selecionados" informações "específicas" a respeito de outros Estados-membros... (ver José Mauricio Bustani, "O Brasil e a Opaq: Diplomacia e Defesa do Sistema Multilateral sob Ataque", Estudos Avançados, vol. 16, número 42, setembro/dezembro 2002, www.usp.br/ iea/revista).
Outra tese do professor Mangabeira: não é consistente a atual posição do Brasil, que, embora signatário do TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear), resiste a assinar um protocolo adicional, prevendo inspeções mais amplas e rigorosas de instalações nucleares. Segundo o professor, "quem participa de boa-fé do regime do tratado não tem por que se opor a medidas complementares de vigilância".
Ora, ora, o TNP já é, em si mesmo, um tratado essencialmente discriminatório. Consagra a existência de duas classes de signatários: a) as nações nuclearmente armadas; e b) as nações não-nuclearmente armadas. As primeiras não precisam submeter suas instalações de pesquisas militares às salvaguardas, e mesmo as instalações de uso civil são inspecionadas apenas quando voluntariamente indicadas por esses países para tal fim. As segundas foram submetidas, desde a adesão ao TNP, a inspeções detalhadas em todas as suas instalações, segundo as regras previstas no tratado. Mais recentemente, a AIEA vem pressionando os países signatários do TNP a assinar "protocolos adicionais", que reforçam e aprimoram os controles. Muitos assinaram, mas a maioria não. A maior parte dos protocolos assinados ainda não entrou em vigor (dados da AIEA, situação em 7 de abril de 2004). Não há nada de inconsistente na decisão brasileira de ater-se, por enquanto, aos compromissos assumidos anteriormente sem aceitar novas obrigações.
A "tese" do professor Mangabeira equivale ao seguinte: já que levamos um desaforo para casa, assinando o TNP, por que não levar mais um, assinando o protocolo adicional?
Mas Mangabeira tem razão na sua "tese" principal, que ele apresenta como "decisiva": o Brasil errou quando aderiu ao TNP em 1998. Um país que assina esse tratado se rebaixa de maneira ignominiosa.
Para que o leitor tenha uma idéia do que representa o TNP, lançado no final dos anos 60, reproduzo o seu artigo 6º: "Cada parte desse Tratado compromete-se a entabular, de boa-fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação em data próxima da corrida armamentista nuclear e para o desarmamento nuclear e sobre um Tratado de desarmamento geral e completo, sob estrito e eficaz controle internacional". As potências nucleares têm sido, como se sabe, extremamente zelosas no cumprimento da sua parte do TNP...
Esse já era o cenário quando o governo Fernando Henrique Cardoso, contrariando as posições defendidas consistentemente pelo Brasil, resolveu entregar-se ao regime discriminatório desse acordo. O que ganhamos com isso? Como observou o embaixador Bustani, no ensaio acima citado, "um simpático tapinha nas costas dos Estados Unidos e de outros defensores do Tratado...".


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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