São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

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LUÍS NASSIF

Uma mágica à brasileira

Uma das características culturais mais marcantes do pensamento público e intelectual brasileiro é um modelo mental que poderia ser descrito sucintamente assim: se tenho um objetivo a ser alcançado, que exige etapas complexas de construção, instituo o objetivo por decreto, e as demais etapas serão construídas por conseqüência.
O Plano Cruzado foi típico desse pensamento mágico. Havia uma inflação inercial. A indexação fazia com que houvesse um preço nominal dos produtos (aqueles fixados semanalmente ou diariamente) e um preço real (a variação do preço em relação aos demais preços da economia). O primeiro era alto; o segundo, baixo. Então tratava-se de trocar as moedas, para que os preços reais substituíssem os nominais.
Para ser bem-sucedido, teria que haver uma âncora cambial, o que pressupunha comércio exterior livre, permitindo a importação de produtos que combatessem altas especulativas; política cambial flexível, permitindo enfrentar desequilíbrios nas contas externas; política monetária flexível, eliminando a indexação; contas públicas em ordem, impedindo pressões decorrentes do fim do imposto inflacionário; trabalho prévio de saneamento do sistema financeiro, pois bancos podres quebrariam com o fim da inflação.
Muita coisa? Então troque-se a moeda e acabe-se com a inércia inflacionária no curto prazo que as demais condições serão criadas como conseqüência da força política obtida pela vitória inicial.
O caso dos 50% das vagas das universidades federais para egressos das escolas públicas é da mesma natureza. O ensino público é fraco, não permite a inclusão social, por não preparar os alunos para disputar vagas nas universidades em igualdade de condições com os da rede privada. Em vez de um trabalho continuado, com ferramentas de planejamento para melhorar o ensino público, identificar e preparar os melhores alunos, estabelece-se a igualdade por decreto. E a universidade pública, que permaneceu centro de excelência do país, apesar da falta de verbas e de gestão, receberá o último tiro em sua credibilidade.
Pertence a essa filosofia tupiniquim a proposta da dupla Pérsio Arida-Edmar Bacha de abrir mão de todas as formas de controle do câmbio, para reduzir o risco Brasil. Os juros para as grandes corporações são uma soma das taxas internacionais, mais o risco de crédito (no qual se avalia a empresa para quem vai se emprestar) e o risco soberano (em que se avalia a capacidade do país de ter dólares para fazer frente às remessas para pagamento do crédito internacional). O risco soberano é função direta da desconfiança que os investidores têm sobre a sustentabilidade de um modelo que torna a economia dependente de fluxos de capitais especulativos.
Em vez de um conjunto de ações e processos que invertessem definitivamente esse receio, o que a dupla propõe? Que se garanta, por decreto, que o bombeiro abdicará de seu direito de utilizar extintores em caso de incêndio. Graças a essa "sacada", o distinto público internacional acreditará que os temores de incêndio estarão definitivamente afastados.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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