São Paulo, sábado, 15 de junho de 2002

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ARTIGO

Distribuição irregular de renda pode levar à plutocracia

PAUL KRUGMAN

O novo livro de Kevin Phillips, "Wealth and Democracy" ["Riqueza e Democracia"" é um calhamaço de 422 páginas, mas boa parte de sua mensagem está contida em uma tabela impressionante. A tabela, localizada no meio de um capítulo intitulado "Plutografia do Milênio", registra a remuneração dos dez executivos-chefes mais bem pagos dos Estados Unidos nos anos de 1981, 1988 e 2000.
Em 1981, esses capitães da indústria recebiam em média US$ 3,5 milhões ao ano, o que parecia muito, àquela altura. Em 1988, a média havia disparado para US$ 19,3 milhões, o que parecia absurdo. Mas em 2000, a remuneração média anual dos dez executivos mais bem pagos chegava a US$ 154 milhões. É verdade que os salários dos trabalhadores comuns mais ou menos duplicaram no período em estudo, ainda que a maior parte desses ganhos tenha sido consumida pela inflação. Mas os ganhos dos principais executivos subiram 4.300%.
De que maneira devemos interpretar esse espantoso desdobramento? Roubando (e alterando) uma frase de Mickey Kaus, da revista "Slate", eu diria que um grupo influente da opinião pública reagiu ao aquecimento global e ao surgimento de uma plutocracia norte-americana da mesma maneira: "Não é verdade, não é verdade, não é verdade, e nada pode ser feito a respeito".
Por muitos anos houve um esforço coordenado de organizações de pesquisa, políticos e intelectuais para negar que a desigualdade estivesse crescendo no país. Glenn Hubbard, hoje presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, é um economista altamente competente; mas ele demonstrou sua fidelidade, durante o governo do primeiro Bush, com um estudo ridiculamente manipulado que supostamente demonstrava que a distribuição de renda não importa porque existe nos Estados Unidos uma enorme "mobilidade de renda" ou seja, os pobres desta década provavelmente serão os ricos da próxima, e vice-versa.
É evidente que isso não acontece. Mesmo ao longo de gerações, há muito menos mobilidade de renda do que acredita a sabedoria popular. Phillips mostra que as histórias de decadência financeira em famílias um dia ricas são sempre exageradas; os descendentes dos barões ladrões do século 19 continuam a ser muito diferentes de você e de mim.
Mas a era dourada parecia positivamente igualitária se comparada com a concentração de riqueza que começa a emergir nos Estados Unidos.
Muito em breve, a negação deixará de ser algo possível. O que os defensores da má distribuição de renda terão a dizer a seguir?
Primeiro, ouviremos que as vastas fortunas se justificam porque são a recompensa por imensas realizações. E é exatamente a esse respeito que a tabela nos serve muito bem, porque conta exatamente quais realizações terminaram recompensadas. Apenas um dos dez executivos mais bem pagos registrados pela tabela, Dennis Kozlowski, foi indiciado em processo criminal. Mas, dentre os demais, três -quatro, se incluirmos John Chambers, da Cisco- eram executivos à maneira de Andy Warhol: suas empresas foram famosas por apenas 15 minutos, o bastante para que eles exercessem suas opções de ações e embolsassem o dinheiro.
A lista também inclui Gerald Levin, que articulou a fusão entre a Time Warner e a America Online no pico da bolha da internet. Mesmo na época, parecia óbvio que ele estava trocando metade dos direitos originais dos acionistas de sua empresa por um balaio de gatos do mundo virtual.
Também nos será dito que, de qualquer maneira, não há nada que se possa fazer para limitar a acumulação e o legado de vastas fortunas de geração para geração. Haverá quem nos diga, por exemplo, que retomar o imposto sobre as heranças teria efeitos econômicos devastadores mesmo que o grande boom dos anos 90 tenha acontecido durante a vigência do imposto de 55% sobre os espólios de alto valor.
Alguns correspondentes me garantiram que os impostos sobre as heranças dos muitos ricos são pouco práticos, e que sempre será possível escapar deles -isso a despeito do fato de o imposto, em 1999, ter arrecadado US$ 15 bilhões dos espólios com valor superior a US$ 5 milhões.
Mas não se trata apenas de uma questão de arrecadar impostos. Phillips, que é militante republicano há muito tempo, se preocupa mais não com a questão econômica em si, mas com as consequências políticas da concentração de renda. Ele adverte que "o desequilíbrio entre riqueza e democracia é insustentável, pelo menos sob os padrões tradicionais de aferição".
De que maneira esse desequilíbrio será resolvido? Os economistas Claudia Goldin e Robert Margo batizaram o grande estreitamento dos diferenciais de renda durante o governo de Franklin Delano Roosevelt de "Grande Compressão"; se estou entendendo corretamente a argumentação de Phillips, ele acredita que algo semelhante acontecerá. Mas também oferece uma alternativa sombria: "Ou a democracia será renovada, com a política voltando à vida, ou a riqueza provavelmente cimentará um regime novo e menos democrático -plutocracia sob um nome diferente".
Uma perspectiva apocalíptica. Mas Phillips tem um histórico impressionante como profeta político. E se ele estiver certo?


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi publicado originalmente pelo jornal "The New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci


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