São Paulo, sábado, 15 de junho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Pacotes calmantes e vulnerabilidade externa

GESNER OLIVEIRA

O dia-a-dia da economia tem o seu jargão próprio. Desde um "pacote calmante" que visou atenuar o nervosismo dos mercados nesta semana até a tão comentada "vulnerabilidade externa", presente em quase todos os discursos políticos, mas ainda um termo cifrado para o público leigo.
Afinal, o que é vulnerabilidade externa? Um relatório recente do Fundo Monetário Internacional, "Indicadores de Vulnerabilidade Externa Relacionados à Dívida e às Reservas", é útil para responder à pergunta. Analogamente às dificuldades de previsão de terremotos, não há, conforme mostra o estudo, um indicador perfeito para a previsão de crises.
Analistas e investidores costumam acompanhar dois grupos principais de variáveis. De um lado, há indicadores de liquidez. O nível das reservas internacionais é um número usado com frequência. Daí, por exemplo, o estabelecimento de um nível mínimo de reservas externas, cujo valor foi alterado ontem de US$ 20 bilhões para US$ 15 bilhões, permitindo maior margem de intervenção do Banco Central no mercado cambial.
Também é comum utilizar a razão entre as reservas e as importações ou ainda o número de meses de importações que as reservas permitem financiar sem necessidade de outras fontes de recursos externos. As reservas internacionais brasileiras correspondem na atualidade a mais de sete meses de importação.
De outro lado, há indicadores de solvência, isto é, da capacidade de pagamento das obrigações externas do país, independentemente de apertos temporários de liquidez.
A principal medida de estoque é a dívida externa. Diferentemente de outros emergentes, o Brasil não tem um problema com sua dívida externa. Seu montante tem apresentado queda em termos absolutos nos últimos anos. Em 1998, a dívida era de US$ 224 bilhões, em 1999 foi para US$ 225 bilhões e nos últimos dois anos caiu para US$ 217 bilhões e US$ 204 bilhões. Esses valores incluem as dívidas externas pública e privada, mas excluem empréstimos entre companhias que, em geral, são operações de investimento direto registradas como empréstimo por motivos tributários.
A trajetória declinante da dívida externa parece estar em contradição com a persistência de déficits em conta corrente superiores a US$ 20 bilhões nos últimos anos. A aparente contradição se explica pela forma que os déficits têm sido financiados. Em termos líquidos, o Brasil tem captado na forma de dívida praticamente o mesmo montante necessário para cobrir as suas amortizações, aquilo que no jargão se chama mera rolagem de dívida. O dinheiro novo que cobre o déficit vem na sua maior parte do investimento direto estrangeiro.
Os recursos de investimento direto não se transformam em dívida externa, mas se incorporam a uma medida mais ampla, o chamado passivo externo líquido. Esse último é composto pela dívida externa financeira e pelo capital estrangeiro que resulta da acumulação dos fluxos de investimento direto estrangeiro, deduzindo-se as reservas internacionais e o capital que os brasileiros detêm no exterior. Sua mensuração é mais difícil do que a da dívida, pois requer a consideração dos valores acumulados dos fluxos passados e sua depreciação.
Para a avaliação da vulnerabilidade externa, também é útil avaliar a razão entre a dívida externa líquida (isto é, deduzidas as reservas internacionais) e as exportações de bens e serviços. Tal quociente indica quantos anos de exportações seriam hipoteticamente necessários para saldar os compromissos externos líquidos. Essa relação vem caindo gradualmente: era de 3 anos em 1999, passou a 2,5 anos em 2000 e chegou a 2,3 anos em 2001.
A razão entre o déficit em conta corrente e o Produto Interno Bruto constitui um dos indicadores mais conhecidos. Em países emergentes com escassez de capital um déficit em conta corrente não é necessariamente ruim, já que pode refletir a atração de poupanças estrangeiras para financiar o desenvolvimento. Entretanto sua persistência por períodos longos de tempo em um mundo crescentemente instável torna o país excessivamente vulnerável. A razão entre déficit em conta corrente e PIB vem caindo no Brasil, mas ainda se encontra no elevado patamar de 3,79% nos 12 meses até abril passado, tendo atingido 4,61% em 2001.
Tal vulnerabilidade externa é percebida pelos investidores e refletida em prêmios de risco mais elevados para o país. Isso induz taxas de juros domésticas mais elevadas, o que inibe o crescimento e eleva os gastos com a dívida pública interna.
As medidas anunciadas na última quinta-feira e complementadas ontem com a elevação do compulsório sobre depósitos a prazo serviram para acalmar o mercado, emitindo sinais de que o Banco Central terá munição para conter bolhas especulativas e de que as contas públicas não sairão dos trilhos.
Embora oportuno, o "pacote calmante" não pretendeu (nem poderia) avançar na solução de problemas estruturais, como a vulnerabilidade externa do país. Essa última requer tratamento gradualista e de longo prazo, visando tornar o país mais competitivo, isto é, produtor de bens e serviços melhores e mais baratos comparativamente ao resto do mundo.


Gesner Oliveira, 46, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-SP, consultor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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