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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O resgate da política econômica

LUCIANO COUTINHO

O debate crítico a respeito da política econômica do governo Lula está duplamente mal enfocado. Primeiro, pela incompreensão da terrível enrascada na qual a economia brasileira foi metida pela política econômica do governo FHC. Segundo, pela falta de clareza a respeito da única saída construtiva -aquela que desmonta a fragilidade financeira, resgata a soberania do Estado e cria condições de sustentação do crescimento.
Custou caríssimo a opção, adotada no início do Plano Real, por um processo rápido de desinflação baseado numa âncora cambial sobrevalorizada e em uma taxa de juros muito elevada para, oportunisticamente, eleger o então ministro da Fazenda e, posteriormente, a insistência na mesma política (até o início de 1999). A taxa de câmbio sobrevalorizada inverteu a balança comercial de superavitária para deficitária e fez com que se acumulassem déficits correntes elevados em moeda forte. Esses déficits foram cobertos por novas dívidas e por desnacionalizações de ativos, fazendo com que os passivos geradores de obrigações em moeda estrangeira se elevassem de US$ 218 bilhões para US$ 439 bilhões em apenas cinco anos. Esse estoque de passivos implica fluxos de saída de dólares (a título de juros, dividendos e outras rendas) da ordem de US$ 23 bilhões por ano. Instalou-se, assim, uma grave fragilização das contas externas, e que deixou a economia crucialmente dependente dos ingressos de capitais. Os mercados financeiros passaram a ditar as prioridades e a política econômica tornou-se refém de suas expectativas e volatilidades. A soberania do Estado brasileiro restou seriamente debilitada. Esse foi um verdadeiro crime de lesa-pátria, de efeitos deletérios duradouros, perpetrado pelo governo do presidente FHC, do qual a história não o absolverá, pois não lhe faltaram alertas fundamentados, emitidos de dentro e de fora do governo.
O abandono da âncora cambial de 1999 para cá flexibilizou a taxa de câmbio e atenuou o fluxo deficitário da conta corrente (ainda que à custa de surtos inflacionários e de contenção do crescimento), mas não resolveu o problema do grande estoque acumulado de passivos. No ano passado, a asfixia provocada pelo enxugamento do crédito e dos investimentos estrangeiros e pela fuga de capitais (retração de US$ 25 bilhões em seis meses) deixou a economia à beira do "default", que só não veio graças ao socorro do Fundo Monetário Internacional.
Assim, o governo Lula herdou o Estado sem raio de manobra, algemado, com sua soberania comprometida. A política ortodoxa era a única alternativa ao caos. A firmeza e a dureza com que a política fiscal vem sendo administrada em 2003, a montagem de uma ampla base de suporte parlamentar e o carisma popular do presidente Lula foram essenciais para inverter a desconfiança dos investidores. O risco-país despencou, a taxa de câmbio cedeu e a inflação também. A economia real foi, porém, minada pelas quedas significativas do gasto público, do consumo e dos investimentos privados (que as exportações, único vetor de expansão, não conseguem contrabalançar). O desemprego aumentou e a massa de rendimentos da sociedade experimenta retração.
A dosagem da constrição monetária e da política de juros pode agora ser aliviada. A inflação -tanto a observada como a esperada- está cedendo e há espaço para começar a diminuir a taxa de juros, mormente sob a perspectiva de um cenário recessionista. A persistência míope no superaperto fiscal e no exagero dos juros reais não é racional nem sustentável (por seus efeitos contraproducentes sobre a relação dívida/ PIB). Razões objetivas e factuais para tanto acabarão por prevalecer, o que obrigará o BC a suavizar.
A discussão a respeito da suposta "conversão irrecorrível" do governo Lula à ortodoxia ignora a possibilidade real de resgate da soberania da política econômica. Essa reconquista transita pelo robustecimento estrutural do balanço de pagamentos e requer a sustentação de um elevado superávit comercial (próximo a US$ 18 bilhões) nos próximos anos, de tal forma que recupere substancialmente a nossa frágil reserva de divisas, hoje reduzida a apenas US$ 13 bilhões. Sem isso, não haverá juro irreversivelmente baixo e estável.
A existência dessa saída não apenas é compreendida pelo governo (que se prepara para implementá-la) mas também corresponde ao desejo de um poderoso arco de forças sociais que se articula desde o grande empresariado produtivo até as organizações representativas das classes trabalhadoras, encampando as classes médias.
Não será fácil chegar lá. Governo e setor empresarial precisarão coordenar-se de forma eficiente e objetiva em torno de grandes projetos e programas setoriais de modo a criar condições financeiras e institucionais (legais e regulatórias) para mover as necessárias decisões de investimento em infra-estruturas e cadeias competitivas.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).

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