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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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LUÍS NASSIF

A presença de Nara

O movimento da bossa nova marcou a passagem da música brasileira para a contemporaneidade. Dos anos 50 aos anos 70 houve o resgate das diversas manifestações musicais brasileiras, da música mais diretamente influenciada pelo jazz e pelo bolero aos ritmos nordestinos e ao samba de morro, um amálgama que conquistou a classe média mais intelectualizada, resultando no que é chamado de MPB.
Nenhum nome representou melhor esse período do que Nara Leão, morta alguns anos atrás. Lá na nossa Poços de Caldas, Nara era um mito diria inexplicável. A voz era agradável, mas não chegava a ser grande intérprete. A personalidade era doce, longe da liderança explosiva de uma Elis Regina. Intelectualmente, era uma mocinha moderna da Ipanema daqueles tempos, que descobriu a pobreza e transformou a justiça social em bandeira. O povo maldoso chama de "esquerda festiva", porque a pregação social só se dava em ambientes com bom uísque.
Nara parecia com nossa prima boazinha, com a amiga legal, tudo isso poderia explicar parte de seu fascínio, mas ela era muito mais. Praticamente liderou todas as grandes mudanças que ocorreram na música brasileira, naqueles anos efervescentes.
No apartamento de seu pai nasceu a bossa nova. Deixou de gravar o primeiro LP da bossa porque a gravadora Continental achou chata sua voz e a música que levou, "Insensatez", e ela recusou a sugestão de gravar boleros. Quando a bossa nova explodiu, ela já estava em outra, descobrindo os sambistas de morro. Seu primeiro disco, aliás, foi um compacto simples, que continha "Maria Moita", de Carlos Lira, em um lado, e "Diz que Fui por Aí", de Zé Keti, do outro. Pouco depois, mergulhou de cabeça no show "Opinião" e ajudou a lançar para os estudantes de todo o país a figura vigorosa de João do Valle.
Tempos depois foi substituída no show por Maria Bethânia, e a música "Carcará", de João do Valle, adquiriria uma dimensão épica, consagrando a nova cantora.
Quando a música brasileira descobriu o protesto, ela descobriu Chico Buarque. Encantou-se com "Olé-Olá" e teria sido a primeira a gravar "A Banda", dos maiores sucessos da história da música brasileira, não fosse o fato de Chico tê-la inscrito no Festival da Record. A apresentação foi de Nara Leão. Não me lembro de nenhuma música que tivesse provocado o impacto de "A Banda" quando foi lançada. Tempos depois, lançou um novo clássico, o compositor Sidney Miller, e não parou mais.
Enveredou pelo teatro, participou do "Liberdade, Liberdade", descobriu Gilberto Gil, gravou guarânias e Roberto Carlos, Fagner e Fausto Nilo, com uma capacidade de lançar e descobrir talentos que apenas Elis Regina tinha.
Sem grandes arroubos intelectuais, sem discursos sofisticados, com uma voz mediana, Nara tornou-se uma das grandes referências na fixação do padrão estético da nova música que se formava naqueles anos. Diria que esse padrão foi basicamente definido primeiro por João Gilberto, depois por Nara, Elis e, mais à frente, por Caetano.
João Gilberto entendia-se por ter criado um novo padrão musical. Elis foi a grande cantora, a personalidade exuberante, a dona dos programas de auditório. Caetano era o polemista vigoroso, que sabia e sabe utilizar como ninguém as ferramentas do marketing pessoal. Nara não tinha nada disso. Era discreta, quase tímida, com uma vida pessoal recatada, sem a pretensão de dominar o ambiente, mas com uma presença que lhe permitia, quase sem se notar, conviver com luzes muito mais fortes -como sua própria irmã Danusa, das grandes mulheres dos anos 50 e 60.
Foi a primeira das musas contemporâneas da minha geração.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br

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