São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Quem vai pagar a conta?

RUBENS RICUPERO

Se a melhor maneira de combater a miséria é reduzir a desigualdade e se esta se caracteriza no Brasil pela obscena concentração de recursos em mãos dos 10% mais ricos, é desses abastados que têm de vir a principal contribuição para resolver o problema.
O estudo do Ipea que temos comentado indica que bastaria para isso transferir 3,2% da renda das famílias brasileiras. Ele se refere, é claro, ao conjunto das famílias, o que inclui desde os assalariados de subúrbio, usuários dos trens da Central, até os especuladores do mercado financeiro, que só se deslocam de helicóptero para ir ao escritório ou às casas de praia em Angra.
É óbvio que não teria cabimento imaginar contribuição paritária dos dois grupos. Ora, o sistema tributário é tão perverso que é provável encontrar-se na segunda categoria a imensa maioria dos que não pagam nenhum imposto. Ninguém ignora que só os ricos e poderosos têm acesso às mais sofisticadas formas de planejamento tributário capazes de tirar vantagem das menores brechas da legislação, de valer-se de todo tipo de isenção e incentivo e, se necessário, de recorrer a dispendiosos processos judiciais para escapar do fisco.
Aos demais, à legião dos que vivem de salário, só resta resignar-se aos descontos em folha e indignar-se de vez em quando diante de revelações como a de que 70 das 90 responsáveis pelas maiores remessas ao exterior pela conta CC-5 não pagaram Imposto de Renda!
É por isso que discordo das reações mais extremadamente negativas à proposta do presidente do Senado. Afinal, o Executivo poderia ter tomado a iniciativa e não o fez por motivos ignorados. De acordo com amigo meu, a omissão se deve à convicção dos nossos "social-democratas" de que, no Brasil do Império e da República, cabe sempre aos conservadores realizar as reformas propugnadas pelos liberais. Se assim for, nada mais lógico que deixar ao senador Antonio Carlos a chance de merecer a mesma glória do seu ilustre conterrâneo, o Visconde de Rio Branco, a cujo longo e profícuo gabinete se deve em boa parte aquela crença.
E a oposição, por que não entraria no jogo? Para esperar a data incerta e não sabida em que chegará finalmente ao poder a fim de lançar a idéia em melhores bases? Se o problema é a desconfiança, a melhor maneira de tirar a dúvida é pôr à prova a proposta.
A prova dos nove está justamente na questão dos impostos. Não se pode falar seriamente em acabar com a miséria e a desigualdade sem antes obrigar os muito ricos não só a pagar imposto, mas a pagar muito mais que os outros. Isso inclui eliminar a peneira furada das isenções e fechar de vez o escandaloso buraco negro que isenta de todo e qualquer tributo os ganhos de capital realizados pelos recursos especulativos atraídos pelos diferenciais de taxas de juro.
Os 3,2% de renda familiar que se devem transferir para erradicar a miséria representam a média necessária. Quer dizer, alguns terão de transferir mais, outros menos, dessa cifra. Dada a tradição brasileira, se não ficarmos de olho aberto, essa iniciativa pode acabar em situação da qual os ricos uma vez mais saiam isentos e os remediados e quase pobres tenham de entrar com todo o dinheiro para ajudar os miseráveis.
Como essa não é seguramente a intenção, quem sabe poderemos esperar que os grandes interesses bancários e empresariais normalmente associados à clientela eleitoral dos partidos conservadores se disponham dessa feita a contribuir à solução do maior problema nacional. Do contrário, seríamos forçados a concluir que essa é apenas manifestação nova daquela velha conhecida nossa, a hipocrisia, homenagem, segundo La Rochefoucauld, que o vício presta à virtude.
De todo modo, é positivo que o mais importante dos problemas brasileiros, sob muitos aspectos, ocupe ainda que tardiamente a agenda nacional. Esta andava caracterizada nos últimos tempos seja pelo vácuo, seja por bate-bocas desprimorosos e até deprimentes sobre temas de confusa origem e duvidosa relevância. É bom que agora se volte ao essencial, sob a condição, porém, de que haja vontade séria de agir para resolver o problema.
Se assim não fosse, teríamos de voltar a buscar refúgio na ironia "com rabugens de pessimismo" a que já com frequência recorria em sua época Machado de Assis, fino conhecedor deste país e de seus vícios. Sobre ele, Alfredo Bosi acaba de publicar o magnífico "O Enigma do Olhar", em que tudo, mas em especial o primeiro e o último ensaios, são estudos luminosos do bruxo de Cosme Velho. Em suas páginas colhi esta pérola do padre Manoel Bernardes, de "Luz e Calor", apropriado fecho ao artigo: "Muitas vezes julgamos ser propósitos assentados o que não passam de veleidades puras. As veleidades explicam-se com a palavra "Quisera". Os propósitos ou determinações, com a palavra: ""Quero". E, assim como um ""quisera" pode estar junto com um "não quero", assim os tais desejos de fazer podem estar juntos com um "não faço".



Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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