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OPINIÃO ECONÔMICA
Quem vai pagar a conta?
RUBENS RICUPERO
Se a melhor maneira de combater a miséria é reduzir a desigualdade e se esta se caracteriza no
Brasil pela obscena concentração
de recursos em mãos dos 10%
mais ricos, é desses abastados que
têm de vir a principal contribuição para resolver o problema.
O estudo do Ipea que temos comentado indica que bastaria para isso transferir 3,2% da renda
das famílias brasileiras. Ele se refere, é claro, ao conjunto das famílias, o que inclui desde os assalariados de subúrbio, usuários
dos trens da Central, até os especuladores do mercado financeiro,
que só se deslocam de helicóptero
para ir ao escritório ou às casas de
praia em Angra.
É óbvio que não teria cabimento imaginar contribuição paritária dos dois grupos. Ora, o sistema
tributário é tão perverso que é
provável encontrar-se na segunda categoria a imensa maioria
dos que não pagam nenhum imposto. Ninguém ignora que só os
ricos e poderosos têm acesso às
mais sofisticadas formas de planejamento tributário capazes de
tirar vantagem das menores brechas da legislação, de valer-se de
todo tipo de isenção e incentivo e,
se necessário, de recorrer a dispendiosos processos judiciais para escapar do fisco.
Aos demais, à legião dos que vivem de salário, só resta resignar-se aos descontos em folha e indignar-se de vez em quando diante
de revelações como a de que 70
das 90 responsáveis pelas maiores
remessas ao exterior pela conta
CC-5 não pagaram Imposto de
Renda!
É por isso que discordo das reações mais extremadamente negativas à proposta do presidente do
Senado. Afinal, o Executivo poderia ter tomado a iniciativa e não o
fez por motivos ignorados. De
acordo com amigo meu, a omissão se deve à convicção dos nossos
"social-democratas" de que, no
Brasil do Império e da República,
cabe sempre aos conservadores
realizar as reformas propugnadas
pelos liberais. Se assim for, nada
mais lógico que deixar ao senador Antonio Carlos a chance de
merecer a mesma glória do seu
ilustre conterrâneo, o Visconde de
Rio Branco, a cujo longo e profícuo gabinete se deve em boa parte
aquela crença.
E a oposição, por que não entraria no jogo? Para esperar a data
incerta e não sabida em que chegará finalmente ao poder a fim de
lançar a idéia em melhores bases?
Se o problema é a desconfiança, a
melhor maneira de tirar a dúvida
é pôr à prova a proposta.
A prova dos nove está justamente na questão dos impostos.
Não se pode falar seriamente em
acabar com a miséria e a desigualdade sem antes obrigar os
muito ricos não só a pagar imposto, mas a pagar muito mais que
os outros. Isso inclui eliminar a
peneira furada das isenções e fechar de vez o escandaloso buraco
negro que isenta de todo e qualquer tributo os ganhos de capital
realizados pelos recursos especulativos atraídos pelos diferenciais
de taxas de juro.
Os 3,2% de renda familiar que
se devem transferir para erradicar a miséria representam a média necessária. Quer dizer, alguns
terão de transferir mais, outros
menos, dessa cifra. Dada a tradição brasileira, se não ficarmos de
olho aberto, essa iniciativa pode
acabar em situação da qual os ricos uma vez mais saiam isentos e
os remediados e quase pobres tenham de entrar com todo o dinheiro para ajudar os miseráveis.
Como essa não é seguramente a
intenção, quem sabe poderemos
esperar que os grandes interesses
bancários e empresariais normalmente associados à clientela eleitoral dos partidos conservadores
se disponham dessa feita a contribuir à solução do maior problema nacional. Do contrário, seríamos forçados a concluir que essa é
apenas manifestação nova daquela velha conhecida nossa, a
hipocrisia, homenagem, segundo
La Rochefoucauld, que o vício
presta à virtude.
De todo modo, é positivo que o
mais importante dos problemas
brasileiros, sob muitos aspectos,
ocupe ainda que tardiamente a
agenda nacional. Esta andava
caracterizada nos últimos tempos
seja pelo vácuo, seja por bate-bocas desprimorosos e até deprimentes sobre temas de confusa
origem e duvidosa relevância. É
bom que agora se volte ao essencial, sob a condição, porém, de
que haja vontade séria de agir para resolver o problema.
Se assim não fosse, teríamos de
voltar a buscar refúgio na ironia
"com rabugens de pessimismo" a
que já com frequência recorria
em sua época Machado de Assis,
fino conhecedor deste país e de
seus vícios. Sobre ele, Alfredo Bosi
acaba de publicar o magnífico "O
Enigma do Olhar", em que tudo,
mas em especial o primeiro e o último ensaios, são estudos luminosos do bruxo de Cosme Velho. Em
suas páginas colhi esta pérola do
padre Manoel Bernardes, de "Luz
e Calor", apropriado fecho ao artigo: "Muitas vezes julgamos ser
propósitos assentados o que não
passam de veleidades puras. As
veleidades explicam-se com a palavra "Quisera". Os propósitos ou
determinações, com a palavra:
""Quero". E, assim como um ""quisera" pode estar junto com um
"não quero", assim os tais desejos
de fazer podem estar juntos com
um "não faço".
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
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