São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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LUÍS NASSIF
O cronista do Rio

Pelo relato dos antigos, pelas marcas que ficaram na cultura nacional da época, sou inclinado a aceitar que, nos anos 40 e 50, o Rio era uma cidade um tanto mais interessante do que Poços de Caldas, pelo relato de minhas fontes poçoscaldenses que se mudaram para o Rio naquele período.
O grande salto do Rio foi no período da Segunda Guerra, quando passou a abrigar os exilados do jet-set internacional. O Rio dos anos 30, gostosíssimo, ainda mantinha restos do Império e da Primeira República. O Rio dos anos 40 juntava-se em torno do jogo e do Copacabana Palace.
Quando estourou a Segunda Guerra, os Guinle trouxeram para o Brasil o barão Von Stucker que, em pouco tempo, revolucionou a vida noturna carioca. De relações públicas do Copacabana Palace, o barão aventurou-se pela noite e criou a Vogue, a mais relevante casa noturna que o Rio conheceu, na Princesa Isabel.
Para abrilhantá-la, o barão foi buscar na Europa duas figuras que se tornaram lendárias no Rio. A primeira foi o pianista Sacha Rubin, um libanês metido a francês que tocava piano com um copo de uísque do lado e um cigarro estacionado no canto da boca.
A segunda personalidade foi o chefe de cozinha Gregoire Belinzanski, um russo branco que introduziu três pratos clássicos na cozinha brasileira: o strogonoff, o frango à Kiev e o picadinho à brasileira.
A guerra expulsava para a cidade os europeus e americanos endinheirados, querendo viver intensamente. O lado cultural brilhava estimulado pelo ministro da Educação, Gustavo Capanema. O Brasil passava a ter o seu músico oficial, Villa Lobos, seu pintor oficial, Portinari, seu poeta oficial, Manuel Bandeira, popularizavam-se Drummond, Vinícius e Paulo Mendes Campos, surgiam José Lins do Rego e Jorge Amado, todos girando em torno da temática nacional. O Brasil se descobria.
A arquitetura tornava-se sofisticadamente simples com Oscar Niemayer, Lúcio Costa e os pouco reconhecidos três irmãos Roberto. Na decoração, Henrique Liberal injetava uma lufada de ar fresco nos apartamentos da avenida Atlântica, despindo-os da imitação européia, dos cortinados de veludo e dos móveis estilo rococó.
O grande balneário ia se transformando na cidade mais divertida do planeta, firmando um novo padrão estético tanto na literatura quanto nas artes e na sociedade.

Perfeita tradução
Pelos idos de 20, Copacabana não passava de um local de férias, onde as famílias mais abastadas mantinham suas casas de praia exclusivamente para temporadas.
Foi nessa mesma Copacabana que na casa do avô Lauro Muller, em 1923, nasceu Maneco, a mais perfeita tradução para o Rio internacional dos anos 40 e 50. O avô havia sido ministro do Exterior, depois de ter-se convertido numa espécie de cuco-mor da República: coube a ele, acompanhado de dois tenentes, acordar o marechal Deodoro, para que não chegasse atrasado à Proclamação da República.
Maneco tinha três anos quando a mãe separou-se do pai e mudou-se para a Europa, onde o moleque ficou até os dez anos. Voltou falando inglês e querendo ser teatrólogo.
Em 1943, suas pretensões literárias encontraram uma vocação, quando Prudente de Moraes Neto o levou para a "Folha Carioca". Ficaram por seis meses apenas. A "Folha" virou getulista e Prudente mudou-se de mala e cuia e Maneco para o "Diário Carioca".
O "Diário" era meio maluco, mas com uma força tremenda. Só tinha cronista. O secretário de redação era Everardo Guilhon. Epitácio Timbaúba fazia crônica policial. Castelinho, crônica política. Lúcio Rangel, crônica de música. Paulo Mendes Campos e Sérgio Porto eram cronistas cronistas mesmo. Vinícius fazia crônicas poéticas, assim como Fernando Lobo. Prudente fazia crônicas de turfe, com o pseudônimo de Pedro Dantas e assessoria integral da esposa, Inah Novaes, sua prima-irmã, com quem teve uma lua-de-mel que entrou para as lendas boêmias da cidade.
O "Diário Carioca" lançou o lide (a abertura seca, contendo o tema principal do artigo), o copidesque (o redator que trabalha o texto dos repórteres) e a foto em movimento, uma enorme reforma conduzida por Pompeu de Souza, assim que voltou dos Estados Unidos.
Aí Prudente, o cronista de turfe, fez o convite a Maneco: "Você vai ser cronista social".
O pequeno Maneco, de saúde frágil mas de temperamento petulante, que se gabava de ser aluno de jiu-jítsu da família Gracie, não gostou: "É coisa de veado", respondeu.
Acabou aceitando, pois o salário não era de jogar fora. Mas sem frescuras! Em lugar de crônicas floridas, Maneco foi buscar a receita no colunismo americano de Elza Maxwell, Nick Boker e Walther Nin. Notas curtas, com muito humor e maldade, mais humor do que maldade, mais divertido do que agressivo. E Maneco Muller, a essa altura Jacinto de Thormes, em sua coluna no "Diário Carioca", inaugura a palavra colunismo, e passa a trazer para o ofício o padrão estético da geração dos 40. O "in" passa a ser o despojamento, a simplicidade, o brasileiro.
O Rio deixa de lado (quase) definitivamente o parnasianismo, mas não a pompa. Jacinto dá novo impulso ao "Baile das Debutantes". Depois dele, toda debutante carregaria eternamente no nome o título de ex-debutante. O concurso "Glamour Girl", lançado por ele, era mais aguardado do que eleição presidencial, consagrando algumas campeãs inesquecíveis, como Rosinha Fernandes, futura senhora Hélio Fernandes, e Ilde Caravaglia.
Hoje, o Rio esqueceu Jacintho, aquele mesmo que Billy Blanco satirizava em seus sambas-choro inesquecíveis.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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