São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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LUÍS NASSIF

O presidente bossa-nova

O país comemorou cem anos de nascimento de Juscelino Kubistchek, consagrando-o como um dos estadistas do século 20. Virou referência nacional, de FHC a Lula.
Na vida nacional, jamais houve presidente tão cativante. Não era distante como Getúlio Vargas, fechado, ensimesmado, solitário. Nem elitista como Fernando Henrique Cardoso, mais à vontade nos salões do que nas ruas. Anos atrás, aliás, na casa do deputado federal Carlos Mosconi, ouvi um CD com serestas brasileiras, com duas faixas cantadas por JK. O "Peixe Vivo" virou espécie de hino nacional de JK, assim como as canções das serestas de Diamantina. O presidente pé-de-valsa, o "presidente bossa-nova", como na sátira célebre de Juca Chaves: "Bossa nova, mesmo, é ser presidente / desta terra descoberta por Cabral".
Na vida pública, havia vários JK. O mais conhecido era o conciliador, o homem capaz de unir o PSD e o PTB na montagem da mais sólida aliança política que o país conheceu até o governo FHC. E havia o construtor, o realizador sem limites dos "50 anos em cinco", o intuitivo genial. Seu governo foi o primeiro a trabalhar de maneira ampla o conceito de planejamento estratégico, desenvolvido no pós-guerra, e a abrir as portas da economia para a industrialização.
Uma terceira faceta de JK era a coragem. Foi o único governador que ficou solidário a Vargas, no seu enterro, e fez uma campanha para presidente que entrou para os anais pela coragem com que enfrentou tentativas golpistas. Foi determinado na repressão e generoso no perdão.
Havia o JK galante, o sátiro implacável, que, em seu período de presidente, tinha uma amante por dia da semana. Mas havia um lado obscuro em JK. Havia a absoluta ignorância com que tratava temas econômicos e a demagogia com que procurava esconder sua irresponsabilidade fiscal. A construção de Brasília foi o álibi de JK para arrebentar qualquer controle orçamentário. Quebrou literalmente o país e reagiu à quebradeira com uma campanha demagógica contra o FMI, que produziu uma cena burlesca. Na frente do Palácio Laranjeiras, multidões em passeata de apoio ao ato heróico. Atrás, a porta se abrindo para o embaixador Walther Moreira Salles, convocado às pressas para negociar uma ajuda do Fundo.
Líder que ganhou expressão mundial, homem que modernizou o país, JK era cercado de pessoas no mínimo duvidosas. Comedido nos seus julgamentos, Moreira Salles o considerava um "cigano", sem compromisso com idéias, partidos e grupos, e bastante vulnerável a amizades pouco selecionadas.
Havia, finalmente, o Juscelino ingênuo. Fora do poder, o candidato de JK à sua sucessão foi o marechal Henrique Lott. A eleição foi vencida por Jânio Quadros, com uma campanha em que não poupou JK por um minuto. A ponto de se recusar a receber a faixa presidencial do presidente que saía.
Com menos de seis meses de governo Jânio, em um evento organizado em São Paulo pelo então jovem acadêmico Mário Garnero, JK foi ovacionado em plena catedral da Sé e carregado nos ombros do povo até a sede do Jockey Clube, na rua Boa Vista.
E aí entra o JK ingênuo. Com a renúncia de Jânio, Juscelino supôs até o fim que o novo presidente, João Goulart, o apoiaria nas eleições de 1965.
JK estava em Turim, visitando a Fiat, quando morreu o papa João 23. A Fiat colocou um avião à disposição para levá-lo a Roma. Jango já estava lá, hospedado na casa do embaixador brasileiro na Santa Sé. Juscelino resolveu visitá-lo. Garnero e outro assessor, que o acompanhavam, foram contra. JK concordou em não ir. Em seu lugar foram os assessores, que voltaram com a certeza: Jango tinha um caminho próprio para a sua sucessão que não passava por JK.
Em 31 de março de 1964 eclodiu, em Minas Gerais, o movimento militar que derrubou o presidente João Goulart, sob o comando do general Olímpio Mourão Filho. Na tarde daquele dia, JK foi visitar Jango no Palácio das Laranjeiras. Pediu que desautorizasse os radicais de seu governo e tranquilizasse as Forças Armadas, nomeando um ministério conservador e punindo os militares que haviam quebrado a hierarquia. Um apelo tardio e inútil. A solidariedade ao amigo pouco solidário lhe custou, mais tarde, os direitos civis.

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