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São Paulo, segunda-feira, 15 de setembro de 2003

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ANÁLISE

Um novo fracasso, pelas velhas causas

DO ENVIADO A CANCÚN

É perfeita a ironia da ONG Public Citizen, segundo a qual Cancún foi uma "Seattle na praia". De fato, há muitas semelhanças entre o fracasso da OMC agora e em Seattle, há quatro anos. Primeiro, o visual: em Seattle e em Cancún as ONGs festejaram o fracasso como se ele se devesse a elas.
É uma verdade muito parcial. Por mais que Seattle tenha ficado marcada como o primeiro grande protesto contra o modelo de globalização "corporativa", como a chamam os críticos, o fato é que não foram os protestos fora do Centro de Convenções que levaram ao colapso, mas as divergências dentro dele entre os países-membros da OMC.
Agora, de novo foi assim. Mas é justo acrescentar que o papel de suporte que as ONGs estão dando aos países em desenvolvimento criou uma nova dinâmica nas negociações e fortaleceu o lado que sempre foi mais fraco. Já não se sentem amedrontados a ponto de cederem quando os países ricos começam a pressioná-los, o que sempre acontece.
Segundo ponto de contato com Seattle: há uma imensa resistência dos países em desenvolvimento, em especial os mais pobres, para aceitar a inclusão na agenda da OMC dos chamados "novos temas", ou "temas de Cingapura" (investimentos, compras governamentais, facilitação de negócios e políticas de concorrência).
Tome-se o caso da Índia, um dos países decisivos para o impasse que levou ao colapso de Cancún: o governo quer ter o direito de adotar políticas industriais, o que significa flexibilidade para exigir dos investidores estrangeiros um dado tipo de compromissos. Um acordo de investimentos, nos moldes propostos pelos países desenvolvidos, levaria ao oposto: liberdade para os capitais, não para as políticas públicas.
Contribui para a enorme reticência dos países em desenvolvimento o fato de que nunca se cumprem as formidáveis benesses que adviriam do livre comércio, conforme propalam, uma e outra vez, os países ricos e uma parte considerável dos especialistas em comércio.
Agora, o anzol dos ganhos portentosos ressurgiu com força: o Banco Mundial chegou a calcular que, se concluída satisfatoriamente no final de 2004, tal como previsto, a nova rodada comercial tiraria 144 milhões de pessoas da pobreza e representaria um acréscimo de cerca de US$ 520 bilhões à renda global até 2015.
Sedutor, não fosse o fato de que, após terminado o ciclo anterior de liberalização comercial (a Rodada Uruguai, que foi de 1986 a 1993), cálculos similares foram anunciados e, mais ainda, se dizia que a maior parte do bolo do crescimento iria para os países em desenvolvimento.
Aconteceu o contrário. Pior: temas de interesse para os países em desenvolvimento continuam pendentes de implementação. Tanto assim que o ministro Celso Amorim ironizou, na entrevista coletiva do G21, após o fracasso de Cancún, que agricultura era o "assunto não terminado, ou melhor, não iniciado" para a OMC.
É uma alusão ao fato de que, enquanto o comércio de bens não-agrícolas foi fortemente liberalizado nos últimos 20 anos, a agricultura continua sendo o reinado da proteção por parte dos países desenvolvidos, que gastam cerca de US$ 1 bilhão por dia para proteger seus produtores.
Idêntica é a situação dos produtos têxteis, área em que alguns países em desenvolvimento têm grande competitividade, mas enfrentam barreiras dos ricos.
"São demandas altamente razoáveis", diz Michael Bailey, diretor da ONG britânica Oxfam. "Os países desenvolvidos deveriam ter interesse nelas porque a prosperidade de países como Índia e Brasil seria favorável também para o mundo rico", completa.
Em Cancún, no entanto, as demandas "razoáveis" não conseguiram espaço. O fracasso foi decorrência inevitável. (CR)


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