UOL


São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Não olhe para baixo

PAUL KRUGMAN

Durante os anos 90 passei muito tempo concentrado nas crises econômicas ao redor do mundo -em particular nas crises monetárias como as que atingiram o Sudeste Asiático em 1997 e a Argentina em 2001. É difícil prever quando essas crises vão ocorrer. Mas existem sinais de advertência, como grandes déficits comerciais e orçamentários e dívidas crescentes.
E há uma coisa que não posso deixar de notar: um país do Terceiro Mundo com os números recentes dos EUA -enormes déficits orçamentário e comercial, crescente dependência de empréstimos de curto prazo do resto do mundo- definitivamente estaria na lista de cautela.
Não sou o único que pensa assim. A Lehman Brothers tem um modelo matemático conhecido como Dâmocles que ela chama de "sistema de advertência precoce para identificar a probabilidade de países entrarem em crises financeiras". Os países em desenvolvimento parecem bastante seguros hoje em dia. Mas a aplicação do mesmo modelo a alguns países desenvolvidos "faria o alarme de Dâmocles tocar". O comunicado de imprensa da Lehman acrescenta: "A mais conspícua dessas ameaças são os EUA".
Está bem, vamos repassar alguns contra-argumentos tranquilizadores.
Primeiro, os economistas são muito bons para criar modelos que teriam previsto crises passadas, mas cada nova crise tende a acontecer onde e quando eles não esperavam. Por isso, mesmo que nosso déficit orçamentário seja maior em relação à economia do que o da Argentina em 2000 e que nosso déficit comercial seja maior em relação à economia do que o da Indonésia em 1996, nossa experiência não precisa ser igual.
Segundo, crises difíceis nos países do Terceiro Mundo têm muito a ver com o fato de sua dívida ser em moeda estrangeira, geralmente em dólares. Em consequência, quando o peso ou a rupia despencam, as dívidas explodem enquanto os ativos não, e os balanços desmoronam. Em contraste, graças ao papel internacional especial do dólar, a crescente dívida externa dos EUA é em nossa própria moeda.
Finalmente, os mercados financeiros geralmente se dispõem a dar aos países desenvolvidos o benefício da dúvida. Mesmo quando um país desenvolvido parece estar em um profundo buraco financeiro, os credores geralmente supõem que, de alguma forma, ele encontrará os recursos e a vontade política para sair dele.
Então os EUA estão seguros, apesar dos atuais números assustadores?
Os países do Terceiro Mundo geralmente sofrem de fraquezas institucionais. Eles têm uma fraca governança corporativa: você não pode confiar na contabilidade das empresas, e pessoas privilegiadas geralmente enriquecem às custas dos acionistas. Enquanto isso, o favoritismo é generalizado, com ligações pessoais e financeiras entre políticos poderosos e as próprias companhias que se beneficiam da generosidade pública. Felizmente, nos EUA não temos nenhuma dessas fraquezas. Oh, espere... (Aquilo tudo não é passado? Não. Segundo "The Wall Street Journal", estamos novamente ouvindo advertências de que "o otimismo se baseia em rendimentos massageados".)
Ainda assim, não há dúvida de que os EUA têm recursos para sair do buraco financeiro. A questão é se têm a vontade política.
Hoje existe uma enorme lacuna estrutural -isto é, uma lacuna que não vai desaparecer mesmo que a economia se recupere- entre os gastos e a renda dos EUA. Por enquanto, empréstimos podem preencher essa lacuna. Mas, com o tempo, deverá haver um grande aumento de impostos ou grandes cortes em programas populares. Se nosso sistema político não puder escolher uma alternativa ou outra -e até agora o comandante-em-chefe se recusa até a admitir que temos um problema -, acabaremos enfrentando uma grave crise financeira.
A crise não virá imediatamente. Durante alguns anos os EUA ainda conseguirão tomar empréstimos à vontade, simplesmente porque os credores supõem que as coisas de alguma forma vão se solucionar.
Mas, a certa altura, teremos um momento Wile E. Coyote. Para aqueles que não conhecem os desenhos animados do Papa-Léguas, o Coyote tem o hábito de saltar de despenhadeiros e dar vários passos no ar antes de perceber que não havia nada sob seus pés. Somente então ele despenca.
Como será esse mergulho? Certamente ele envolverá uma queda acentuada do dólar e um aumento acentuado das taxas de juros. No pior cenário, o acesso do governo aos empréstimos será cortado, criando uma crise de caixa que jogará o país no caos.
Eu sei: tudo isso parece inacreditável. Mas você teria acreditado, três anos atrás, que o Orçamento dos EUA despencaria tão rapidamente de um superávit recorde para um déficit recorde? E você teria acreditado que, confrontados com essa queda, nossos líderes ofereceriam desculpas em vez de soluções?



Paul Krugman, economista e professor na Universidade Princeton (EUA), é colunista do "New York Times".

Tradução de Luiz Roberto Gonçalves


Texto Anterior: Opinião econômica: O espírito de Criciúma
Próximo Texto: Panorâmica - Trégua: Monsanto e Bayer fazem acordo de patentes
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.