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OPINIÃO ECONÔMICA
O espírito de Criciúma
PAULO RABELLO DE CASTRO
Criciúma (Arundinaria aristulata doell) é uma graminácea ou, vulgarmente, uma espécie
de capim rústico ou taquarinha,
que, segundo M. Pio Correa, pode
formar "crissiumaes impenetráveis". Sua ocorrência é generalizada do norte do país ao Rio
Grande do Sul em mais de 17 variedades. Mas Criciúma, designando a mesma graminácea, é
uma bela cidade de cerca de 200
mil habitantes ao sul de Florianópolis, num dos Estados mais dinâmicos da Federação.
Quem visita a região, como fiz
na semana passada, não pode se
deixar abater pela sensação de
desalento trazida pela situação
cronicamente recessiva do país.
Criciúma resiste. Fincada como
um morango no relevo suavemente ondulado do litoral catarinense, mas protegida dos apelos
do mar por alguns quilômetros de
distância até a costa, a cidade
conta, para quem a percorra, a
sua própria história pioneira de
gradual acumulação de riqueza,
primeiro pela exploração do carvão, por ali abundante e quase
único no Brasil, e depois pelo despertar de sucessivos empreendimentos industriais, em que se destacam os investimentos cerâmicos que os brasileiros usam em
suas varandas, salas, banheiros e
cozinhas e que os estrangeiros
compram cada vez mais.
Mas há também, no entorno de
Criciúma, o plantio de fumo, o arroz e o crescente agroturismo.
Existe, definitivamente, um "espírito de Criciúma", presente em
milhares de cidades do Brasil, de
norte a sul, do leste ao centro-oeste, que espelha a chegada da sua
maturidade demográfica, conjugada a níveis mais elevados de
educação formal e empreendedorismo. O país real, que enfrenta o
dia-a-dia da produção, nunca esteve tão preparado para realizar
uma grande meta coletiva de
crescimento, a partir do esforço de
toda a comunidade.
Mas os bloqueios ao progresso
são enormes. Num país cuja renda média do trabalhador vem recuando pelos últimos cinco anos,
o "espírito de Criciúma" parece
mais uma obsessão do que uma
decisão perfeitamente racional. A
indústria amarga uma rentabilidade medíocre sobre a aplicação
dos seus ativos em sua atividade
fim, enquanto as rentabilidades
dos ativos financeiros atraem o
capital para o ócio das aplicações
líquidas e, por paradoxo, estupidamente rentáveis.
Quanto tempo mais haverá de
prevalecer essa lógica infernal?
Na origem das contradições vivenciadas entre o país que produz
e o país que desfruta, por transferência dos que produzem, está o
regime tributário brasileiro, cuja
reforma parece morrer, mais uma
vez, nos braços do Congresso Nacional. Já se tornou ponto pacífico, entre os especialistas que têm
discutido os prováveis efeitos da
pretendida "reforma", que o tiro
sairá pela culatra. Além de não
facilitar a produção e a criação de
empregos, o texto atual da tributária representará severo aumento da carga impositiva sobre
quem produz, trabalha e consome.
Está na hora de o governo Lula
mostrar sua face revolucionária,
abrigando um conceito reformista que, de fato, introduza os pretendidos estímulos à produção e
ao investimento produtivo. Afinal, o país que produz mais é
aquele que mata a fome, não só
hoje, amanhã, como sempre!
No entanto cálculos preliminares do novo ICMS unificado,
apresentados pelo mutirão "Rural Brasil" de várias entidades do
campo brasileiro, chegam a projeções alarmantes: conforme as hipóteses formuladas, o aumento
da despesa com insumos agropecuários poderá chegar a 23% pós-reforma. Os custos da produção
de leite (+12%), de feijão (+7%),
de arroz (+10%), de carne bovina
(+7%), de batata (+16%), entre
outros, sofrerão majorações ainda mais ruinosas para o empobrecimento do consumidor.
Calcular com todo cuidado os
efeitos da atual proposta tributária é um dever da base do governo. Entretanto seria preciso ousar
muito mais. O desafio está em desonerar impostos e contribuições
de modo tão neutro e generalizado quando seja possível. Há duas
providências que não poderiam
tardar. A primeira é sair dessa reforma com algumas categorias
tributárias a menos. Deveria ser
ponto de honra dos parlamentares cortar tributos, fundindo uns
com os outros ou os eliminando
simplesmente. Por exemplo, as
contribuições ditas sociais deveriam ser todas fundidas numa só,
transformadas em tributo federal
sobre o valor adicionado, sem
cascata.
A outra providência seria eliminar o IPI, imposto esdrúxulo sobre a produção industrial, criado
no período do autoritarismo político para financiar o regime de
substituição de importações. O
IPI está caindo de velho; é uma
excrescência tributária que já pode ter tido alguma razão de ser no
passado, mas hoje apenas nos envergonha, pelo desatualizado que
representa nesse mundo globalizado. Transformar o IPI num seletivo sobre supérfluos ou vícios
seria mais do que razoável.
O conjunto de três ou quatro
medidas de envergadura no campo tributário é o que toda a nação
espera do governo e do Congresso
Nacional. O espírito de Criciúma
é vivo e forte, está espalhado por
todo país. Mas não é inabalável.
Do jeito que a tributação e os juros maltratam os que produzem e
insistem em realizar o progresso,
poderá haver o dia em que esse espírito diáfano da prosperidade virá a se perder para sempre dentro
de um vasto e impenetrável capinzal.
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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