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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O espírito de Criciúma

PAULO RABELLO DE CASTRO

Criciúma (Arundinaria aristulata doell) é uma graminácea ou, vulgarmente, uma espécie de capim rústico ou taquarinha, que, segundo M. Pio Correa, pode formar "crissiumaes impenetráveis". Sua ocorrência é generalizada do norte do país ao Rio Grande do Sul em mais de 17 variedades. Mas Criciúma, designando a mesma graminácea, é uma bela cidade de cerca de 200 mil habitantes ao sul de Florianópolis, num dos Estados mais dinâmicos da Federação.
Quem visita a região, como fiz na semana passada, não pode se deixar abater pela sensação de desalento trazida pela situação cronicamente recessiva do país. Criciúma resiste. Fincada como um morango no relevo suavemente ondulado do litoral catarinense, mas protegida dos apelos do mar por alguns quilômetros de distância até a costa, a cidade conta, para quem a percorra, a sua própria história pioneira de gradual acumulação de riqueza, primeiro pela exploração do carvão, por ali abundante e quase único no Brasil, e depois pelo despertar de sucessivos empreendimentos industriais, em que se destacam os investimentos cerâmicos que os brasileiros usam em suas varandas, salas, banheiros e cozinhas e que os estrangeiros compram cada vez mais.
Mas há também, no entorno de Criciúma, o plantio de fumo, o arroz e o crescente agroturismo.
Existe, definitivamente, um "espírito de Criciúma", presente em milhares de cidades do Brasil, de norte a sul, do leste ao centro-oeste, que espelha a chegada da sua maturidade demográfica, conjugada a níveis mais elevados de educação formal e empreendedorismo. O país real, que enfrenta o dia-a-dia da produção, nunca esteve tão preparado para realizar uma grande meta coletiva de crescimento, a partir do esforço de toda a comunidade.
Mas os bloqueios ao progresso são enormes. Num país cuja renda média do trabalhador vem recuando pelos últimos cinco anos, o "espírito de Criciúma" parece mais uma obsessão do que uma decisão perfeitamente racional. A indústria amarga uma rentabilidade medíocre sobre a aplicação dos seus ativos em sua atividade fim, enquanto as rentabilidades dos ativos financeiros atraem o capital para o ócio das aplicações líquidas e, por paradoxo, estupidamente rentáveis.
Quanto tempo mais haverá de prevalecer essa lógica infernal? Na origem das contradições vivenciadas entre o país que produz e o país que desfruta, por transferência dos que produzem, está o regime tributário brasileiro, cuja reforma parece morrer, mais uma vez, nos braços do Congresso Nacional. Já se tornou ponto pacífico, entre os especialistas que têm discutido os prováveis efeitos da pretendida "reforma", que o tiro sairá pela culatra. Além de não facilitar a produção e a criação de empregos, o texto atual da tributária representará severo aumento da carga impositiva sobre quem produz, trabalha e consome.
Está na hora de o governo Lula mostrar sua face revolucionária, abrigando um conceito reformista que, de fato, introduza os pretendidos estímulos à produção e ao investimento produtivo. Afinal, o país que produz mais é aquele que mata a fome, não só hoje, amanhã, como sempre!
No entanto cálculos preliminares do novo ICMS unificado, apresentados pelo mutirão "Rural Brasil" de várias entidades do campo brasileiro, chegam a projeções alarmantes: conforme as hipóteses formuladas, o aumento da despesa com insumos agropecuários poderá chegar a 23% pós-reforma. Os custos da produção de leite (+12%), de feijão (+7%), de arroz (+10%), de carne bovina (+7%), de batata (+16%), entre outros, sofrerão majorações ainda mais ruinosas para o empobrecimento do consumidor.
Calcular com todo cuidado os efeitos da atual proposta tributária é um dever da base do governo. Entretanto seria preciso ousar muito mais. O desafio está em desonerar impostos e contribuições de modo tão neutro e generalizado quando seja possível. Há duas providências que não poderiam tardar. A primeira é sair dessa reforma com algumas categorias tributárias a menos. Deveria ser ponto de honra dos parlamentares cortar tributos, fundindo uns com os outros ou os eliminando simplesmente. Por exemplo, as contribuições ditas sociais deveriam ser todas fundidas numa só, transformadas em tributo federal sobre o valor adicionado, sem cascata.
A outra providência seria eliminar o IPI, imposto esdrúxulo sobre a produção industrial, criado no período do autoritarismo político para financiar o regime de substituição de importações. O IPI está caindo de velho; é uma excrescência tributária que já pode ter tido alguma razão de ser no passado, mas hoje apenas nos envergonha, pelo desatualizado que representa nesse mundo globalizado. Transformar o IPI num seletivo sobre supérfluos ou vícios seria mais do que razoável.
O conjunto de três ou quatro medidas de envergadura no campo tributário é o que toda a nação espera do governo e do Congresso Nacional. O espírito de Criciúma é vivo e forte, está espalhado por todo país. Mas não é inabalável. Do jeito que a tributação e os juros maltratam os que produzem e insistem em realizar o progresso, poderá haver o dia em que esse espírito diáfano da prosperidade virá a se perder para sempre dentro de um vasto e impenetrável capinzal.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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