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Banqueiros, santos, demônios (e Covas)
ALOYSIO BIONDI
Clinton parece tão bonzinho,
preocupado com a ajuda ao Brasil e à América Latina, né? E
Camdessus, do FMI, com elogios
ao governo brasileiro, que beleza, hem? Para completar, até o
rigoroso presidente do Banco
Central dos EUA, Allan Greenspan, está mostrando compreensão com os problemas dos países
emergentes, né?
Cuidado com tanta bondade.
Quem leu -realmente- a íntegra dos longos discursos e artigos
desses figurões sobre a "crise
mundial" vai descobrir um festival de hipocrisia e arrogância,
em que países como o Brasil aparecem como terríveis "pecadores". E em que os EUA, brancos,
ricos e católicos, continuam a representar o papel de enviado de
Deus, incumbido de salvar os povos pagãos.
Nem mesmo o festejado economista Paul Krugman, tão badalado nas últimas semanas por
criticar os "remédios amargos"
do FMI e sugerir mudanças, nem
ele, Krugman, escapa dessa visão distorcida.
Qual "santinho do pau oco",
Krugman, em seus mais citados
artigos, também insiste no mesmo diagnóstico que fala em antipagãos, apontados como "os culpados de tudo", mas que, mesmo
assim, é preciso salvar...
Mais claramente: quem leu
-de verdade- a íntegra dos
artigos ou discursos descobriu
que esses figurões, todos tão caridosos, estão na verdade tentando convencer a humanidade de
duas coisas:
1) A política chamada "neoliberal" imposta ao mundo nos últimos anos está absolutamente
certa. A liberdade total para a
especulação financeira, a ditadura do sistema financeiro, deve
continuar.
2) As "crises" da Ásia, do Brasil, da Rússia não foram provocadas por esse escancaramento à
especulação financeira ou pelo
escancaramento às importações,
que beneficiaram os EUA.
As "crises" foram provocadas
pela corrupção, pelos erros de
governo, pelos "empréstimos"
que os bancos locais fizeram, em
larga escala, sem pedir garantias, a empresas e empresários de
seus países (Krugman afirma isso, em relação aos asiáticos...).
Em resumo: o neoliberalismo é
a religião salvadora. Não deve
ser mudado. Não devem existir
controles, por parte dos governos
-pois eles, diz Camdessus, são
um retrocesso, "o demônio". Os
santos são os EUA, o FMI, o Banco Mundial, os agentes da especulação financeira internacional. Só que toda essa hipocrisia é
desmentida pela realidade. Nos
EUA.
A grande farra
Clinton, Krugman, Greenspan, Camdessus falam em "empréstimos irresponsáveis", que
teriam quebrado os bancos, e especulação excessiva nos países
"emergentes".
Por isso nunca é demais relembrar os detalhes da "quebra" do
maior fundo de investimentos
dos EUA, o LTCM: ele tinha um
capital de apenas US$ 2 bilhões;
com esse capital, conseguiu comprar ações e outros títulos no valor de US$ 120 bilhões, ou 60
(sessenta) vezes mais. Absurdo?
A loucura não para por aí: o
LTCM usou esses US$ 120 bilhões em papéis para "dar como
garantia" em negócios de até
US$ 1,2 trilhão (trilhão, mesmo),
ou 600 vezes o seu capital.
Como isso foi possível? É aqui
que Clinton, Krugman, Greenspan, Camdessus e outros figurões passam sobre brasas e não
explicam ao cidadão comum
que todo o mercado financeiro,
no Brasil ou na Coréia, nos EUA
ou na Inglaterra, funciona dessa
forma irresponsável: um fundo
de investimentos ou um banco
ou uma corretora ou um grande
investidor podem realizar "compras", fechar contratos de valor
muitas e muitas vezes superior
ao capital de que dispõem.
Como? Podem fazer depósitos
minúsculos em dinheiro, como
"garantia" de operação -ou
conseguir empréstimos, ou até
mesmo simples aval, ou "fiança", de outros bancos. É isso que
sempre se esconde dos cidadãos
comuns, da sociedade: fundos de
investimentos, grandes especuladores, podem fazer negócios de
bilhões de dólares sem (é isso
mesmo) o dinheiro, simplesmente arranjando bancos como "fiadores", que cobram comissões
para dar o seu aval.
É assim que funciona o mercado financeiro mundial, que movimenta US$ 5 trilhões, US$ 7
trilhões ou US$ 10 trilhões por
dia: com negócios fechados sem
dinheiro, só com fiança, com um
agravante, a saber, um "contrato" é usado como "garantia" para outro "contrato", que garante
outro "contrato" e assim por
diante, numa louca "corrente da
felicidade". Quando o mercado
sofre um abalo, o desfecho é inevitável: não só os "investidores",
mas os "fundos" também sofrem
prejuízos e quebram.
Os bancos, que são os fiadores,
têm por isso que honrar os negócios -e também quebram (no
Brasil, pode-se apostar que essa
é a verdadeira causa da quebra
de bancos nos últimos anos, e
não a tal da coitadinha da "inadimplência").
O grande pecador
Então estamos entendidos: é
simplesmente nauseante a tentativa de dizer que a "crise mundial" é provocada por corrupção,
incompetência, maus empréstimos dos países "emergentes", esses pecadores. A culpa é da louca
"farra" no mercado mundial,
que rendeu centenas de bilhões
de dólares nos últimos anos ao
sistema financeiro, aos grandes
especuladores, aos investidores
-sobretudo dos países ricos.
Tudo graças à "liberdade total" defendida por Clinton,
Camdessus, Greenspan e outros
porta-vozes dos sistema financeiro. Eles usam e abusam do cinismo e da hipocrisia: agora que
se ficou sabendo que os fundos
de investimentos norte-americanos vinham realizando operações fantásticas com simples
fiança dos bancos, o que eles dizem? Que os pobrezinhos dos
bancos "não sabiam" (literalmente) o que fundos como o
LTCM vinham fazendo.
É mesmo? Ora, pois, pois. Só o
Chase Manhattan, os EUA, tinha sido fiador de, nada mais,
nada menos, que US$ 32 bilhões
de negócios do LTCM... Deu garantia a contratos de US$ 32 bilhões, 16 vezes o capital do
LTCM, e não "sabia de nada"?
Uai, então por que Krugman, o
santinho do pau oco, diz que os
bancos coreanos faziam "maus
empréstimos", más operações?
É preciso combater tanta hipocrisia. Pois ela é uma tentativa
de evitar que o mundo se livre da
ditadura financeira, imposta pela "onda neoliberal" de Clinton,
Greenspan, Camdessus e também presidentes da República,
ministros, ex-ministros, banqueiros, ex-presidentes de Banco
Central dos países "emergentes".
É hora da "virada". Que a hipocrisia tenta evitar.
E Covas?
Dentro da política de privatização imposta ao Brasil, o governo Covas entregou a Fepasa
ao governo federal, que vai "vendê-la" em leilão. O preço: míseros R$ 230 milhões, com 10% de
entrada e o restante em 29 anos,
ou 116 prestações trimestrais a
menos de R$ 200 mil por mês.
São 5.000 quilômetros de ferrovias, milhares de vagões e centenas de locomotivas...
Negócio da China. Pior: há dez
dias, o governo "incluiu" no "negócio" a ponte sobre o rio Paraná, na divisa de São Paulo com
Mato Grosso, para o grupo
"comprador" -adivinhe- explorar o pedágio. A construção
dessa ponte, sozinha, custou R$
500 milhões ao governo paulista
(Cesp) na primeira etapa e algo
como R$ 1 bilhão no total. Vai
ser doada?
Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico.
Foi editor de Economia da Folha. Escreve às
quintas-feiras no caderno Dinheiro.
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