São Paulo, quinta, 15 de outubro de 1998

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Banqueiros, santos, demônios (e Covas)

ALOYSIO BIONDI

Clinton parece tão bonzinho, preocupado com a ajuda ao Brasil e à América Latina, né? E Camdessus, do FMI, com elogios ao governo brasileiro, que beleza, hem? Para completar, até o rigoroso presidente do Banco Central dos EUA, Allan Greenspan, está mostrando compreensão com os problemas dos países emergentes, né?
Cuidado com tanta bondade. Quem leu -realmente- a íntegra dos longos discursos e artigos desses figurões sobre a "crise mundial" vai descobrir um festival de hipocrisia e arrogância, em que países como o Brasil aparecem como terríveis "pecadores". E em que os EUA, brancos, ricos e católicos, continuam a representar o papel de enviado de Deus, incumbido de salvar os povos pagãos.
Nem mesmo o festejado economista Paul Krugman, tão badalado nas últimas semanas por criticar os "remédios amargos" do FMI e sugerir mudanças, nem ele, Krugman, escapa dessa visão distorcida.
Qual "santinho do pau oco", Krugman, em seus mais citados artigos, também insiste no mesmo diagnóstico que fala em antipagãos, apontados como "os culpados de tudo", mas que, mesmo assim, é preciso salvar...
Mais claramente: quem leu -de verdade- a íntegra dos artigos ou discursos descobriu que esses figurões, todos tão caridosos, estão na verdade tentando convencer a humanidade de duas coisas:
1) A política chamada "neoliberal" imposta ao mundo nos últimos anos está absolutamente certa. A liberdade total para a especulação financeira, a ditadura do sistema financeiro, deve continuar.
2) As "crises" da Ásia, do Brasil, da Rússia não foram provocadas por esse escancaramento à especulação financeira ou pelo escancaramento às importações, que beneficiaram os EUA.
As "crises" foram provocadas pela corrupção, pelos erros de governo, pelos "empréstimos" que os bancos locais fizeram, em larga escala, sem pedir garantias, a empresas e empresários de seus países (Krugman afirma isso, em relação aos asiáticos...).
Em resumo: o neoliberalismo é a religião salvadora. Não deve ser mudado. Não devem existir controles, por parte dos governos -pois eles, diz Camdessus, são um retrocesso, "o demônio". Os santos são os EUA, o FMI, o Banco Mundial, os agentes da especulação financeira internacional. Só que toda essa hipocrisia é desmentida pela realidade. Nos EUA.

A grande farra
Clinton, Krugman, Greenspan, Camdessus falam em "empréstimos irresponsáveis", que teriam quebrado os bancos, e especulação excessiva nos países "emergentes".
Por isso nunca é demais relembrar os detalhes da "quebra" do maior fundo de investimentos dos EUA, o LTCM: ele tinha um capital de apenas US$ 2 bilhões; com esse capital, conseguiu comprar ações e outros títulos no valor de US$ 120 bilhões, ou 60 (sessenta) vezes mais. Absurdo? A loucura não para por aí: o LTCM usou esses US$ 120 bilhões em papéis para "dar como garantia" em negócios de até US$ 1,2 trilhão (trilhão, mesmo), ou 600 vezes o seu capital.
Como isso foi possível? É aqui que Clinton, Krugman, Greenspan, Camdessus e outros figurões passam sobre brasas e não explicam ao cidadão comum que todo o mercado financeiro, no Brasil ou na Coréia, nos EUA ou na Inglaterra, funciona dessa forma irresponsável: um fundo de investimentos ou um banco ou uma corretora ou um grande investidor podem realizar "compras", fechar contratos de valor muitas e muitas vezes superior ao capital de que dispõem.
Como? Podem fazer depósitos minúsculos em dinheiro, como "garantia" de operação -ou conseguir empréstimos, ou até mesmo simples aval, ou "fiança", de outros bancos. É isso que sempre se esconde dos cidadãos comuns, da sociedade: fundos de investimentos, grandes especuladores, podem fazer negócios de bilhões de dólares sem (é isso mesmo) o dinheiro, simplesmente arranjando bancos como "fiadores", que cobram comissões para dar o seu aval.
É assim que funciona o mercado financeiro mundial, que movimenta US$ 5 trilhões, US$ 7 trilhões ou US$ 10 trilhões por dia: com negócios fechados sem dinheiro, só com fiança, com um agravante, a saber, um "contrato" é usado como "garantia" para outro "contrato", que garante outro "contrato" e assim por diante, numa louca "corrente da felicidade". Quando o mercado sofre um abalo, o desfecho é inevitável: não só os "investidores", mas os "fundos" também sofrem prejuízos e quebram.
Os bancos, que são os fiadores, têm por isso que honrar os negócios -e também quebram (no Brasil, pode-se apostar que essa é a verdadeira causa da quebra de bancos nos últimos anos, e não a tal da coitadinha da "inadimplência").

O grande pecador
Então estamos entendidos: é simplesmente nauseante a tentativa de dizer que a "crise mundial" é provocada por corrupção, incompetência, maus empréstimos dos países "emergentes", esses pecadores. A culpa é da louca "farra" no mercado mundial, que rendeu centenas de bilhões de dólares nos últimos anos ao sistema financeiro, aos grandes especuladores, aos investidores -sobretudo dos países ricos.
Tudo graças à "liberdade total" defendida por Clinton, Camdessus, Greenspan e outros porta-vozes dos sistema financeiro. Eles usam e abusam do cinismo e da hipocrisia: agora que se ficou sabendo que os fundos de investimentos norte-americanos vinham realizando operações fantásticas com simples fiança dos bancos, o que eles dizem? Que os pobrezinhos dos bancos "não sabiam" (literalmente) o que fundos como o LTCM vinham fazendo.
É mesmo? Ora, pois, pois. Só o Chase Manhattan, os EUA, tinha sido fiador de, nada mais, nada menos, que US$ 32 bilhões de negócios do LTCM... Deu garantia a contratos de US$ 32 bilhões, 16 vezes o capital do LTCM, e não "sabia de nada"? Uai, então por que Krugman, o santinho do pau oco, diz que os bancos coreanos faziam "maus empréstimos", más operações?
É preciso combater tanta hipocrisia. Pois ela é uma tentativa de evitar que o mundo se livre da ditadura financeira, imposta pela "onda neoliberal" de Clinton, Greenspan, Camdessus e também presidentes da República, ministros, ex-ministros, banqueiros, ex-presidentes de Banco Central dos países "emergentes". É hora da "virada". Que a hipocrisia tenta evitar.

E Covas?
Dentro da política de privatização imposta ao Brasil, o governo Covas entregou a Fepasa ao governo federal, que vai "vendê-la" em leilão. O preço: míseros R$ 230 milhões, com 10% de entrada e o restante em 29 anos, ou 116 prestações trimestrais a menos de R$ 200 mil por mês. São 5.000 quilômetros de ferrovias, milhares de vagões e centenas de locomotivas...
Negócio da China. Pior: há dez dias, o governo "incluiu" no "negócio" a ponte sobre o rio Paraná, na divisa de São Paulo com Mato Grosso, para o grupo "comprador" -adivinhe- explorar o pedágio. A construção dessa ponte, sozinha, custou R$ 500 milhões ao governo paulista (Cesp) na primeira etapa e algo como R$ 1 bilhão no total. Vai ser doada?


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



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