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LUÍS NASSIF
Não chore ainda não
A primeira vez que ouvi Chico
Buarque de Hollanda eu devia
ter uns 14 ou 15 anos. Foi em um
programa da extinta TV Tupi,
não sei se "Almoço com as Estrelas" ou um programa do Fernando Faro. O cantor tocava seu
violão e nem olhava para a câmara. Acho que cantava "Pedro
Pedreiro".
No início de 1965, com 15 anos
incompletos, passei seis meses
estudando eletrônica, em Santa
Rita do Sapucaí. Fui morar na
república WC, a mais barra pesada da cidade, liderada pelo
itajubano José Saia, que exibia
no braço esquerdo marcas que,
assegurava, eram de navalhadas que recebera de Mineirinho,
o mais célebre bandido da época. Toda manhã acordava com
meu companheiro de beliche, Salário Mínimo, de São José dos
Campos, tocando no violão a
valsa "Subindo aos Céus", de
Aristides Borges.
Música antiga, só na WC. Nas
noitadas de Santa Rita, reinava
a bossa nova, com o violão do Salário Mínimo, de São José, do Tota, de Poços de Caldas, a voz do
Marcão, de Ouro Preto. Em cada
serenata se punham literalmente
de joelhos quando falavam de
Vanda Sá, a Vanda Vagamente,
musa absoluta, cujo retrato estava em um altarzinho na república WC.
Quando voltei a Poços, no segundo semestre de 1965, foi que
teve início a era Chico Buarque
de Holanda. Chico estourou, ao
lado de Geraldo Vandré, no famoso Primeiro Festival da Record. Politizada, nossa turma
torcia pela "Disparada", de Vandré. Mas nas serestas, nossa companheira era "A Banda", de Chico. A televisão, ainda novidade,
transformou a disputa no fato
nacional mais comentado do período. Pouco depois, "Olé Olá" foi
lançada e transformou-se em hino nas nossas serenatas.
Questionamento
No final dos anos 60 teve início
um processo de questionamento
do seu talento. Os pós- bossa-novistas, imersos em acordes cada
vez mais complexos e inócuos,
criticando o que consideravam
excesso de simplicidade de suas
harmonias. Os transgressores políticos criticando sua suposta
alienação. Os transgressores formais abraçando a Tropicália e
criticando seu conservadorismo
formal. Mas nas serenatas, a música de Chico continuava soberana. E cada lançamento era
aguardado com a ansiedade com
que se espera a terceira profecia
de Fátima.
O auge do sentimento anti-Chico foi no Festival Internacional
da Canção, quando grupos politizados vaiaram (pasmem!) ele e
Tom Jobim, em repúdio à vitória
de "Sabiá" sobre "Caminhando",
de Vandré.
Aos poucos, no entanto, o caráter de Chico Buarque foi se impondo e marcando nossa geração, não apenas como o compositor lírico e inspirado, mas como
referência de caráter. Chico não
se envolvia em quizilas musicais,
não fazia fofocas, não se deslumbrou com o sucesso inicial -e
talvez não tenha havido outro
caso de sucesso tão retumbante
na música brasileira. Sequer reclamou das vaias. Continuava
na sua.
Quando a ditadura recrudesceu, Chico seguiu para o exílio,
passou um tempo na Itália. Retornou em seguida, transformando-se na mais influente voz
contra a ditadura.
Recém-admitido como estagiário da revista "Veja", fui incumbido de cobrir seu primeiro show
na volta do exílio, na boate Dobrão, de São Paulo. Tinha dois
meses de jornalismo e me pediam
uma crítica contra o maior nome
da MPB da época. Nervoso com a
responsabilidade do primeiro
trabalho, tomei umas cubas libres a mais, antes de entrar no
camarim de Chico, para entrevistá-lo e ao MPB-4. Estava com
medo, pânico de me comportar
como tiete.
No show, Chico havia tentado
se soltar, gritando além do que
recomendava sua timidez, porque, no padrão estético pós-Vandré, música que não provocasse
"arrepio" não era boa. Arrisquei a
primeira pergunta: "Será que essa sua nova maneira de cantar
meio gritado se coaduna com seu
estilo?". Não sei se o Magro ou o
Aquiles, virou para Chico e provocou: "Quer dizer que você está
saindo com a Duna?". E a Duna
se transformou em tema para
meia hora de, devo admitir, gozação de primeiríssima contra o
foca aqui. Com umas cubas libres
a mais, procurei manter a dignidade na medida do possível, sem
muito sucesso.
Saímos de lá e fomos a um bar
na esquina, a esta altura o grupo
inteiro bêbado. No bar, por acaso, estava Nelson Cavaquinho.
Chico foi direto ao seu ídolo.
"Nelson Cavaquinho, você é meu
ídolo, vou beijá-lo". E Nelson,
mais embriagado ainda: " Não
beijo homem. E você não conhece
nada de música". Estavam os
dois, um de cada lado de uma
mesa de ferro fundido. Chico
avançou por sobre a mesa para
beijar o ídolo e desabaram, mesa
e Chico sobre Nelson Cavaquinho, por pouco não produzindo a
tragédia mais estranha de toda
história da MPB. Ambos sobreviveram ao tombo, e eu à ressaca.
Raízes do Brasil
Nos anos seguintes, o país
avançou mais ainda na grande
noite da ditadura, passou pelo
caso Herzog, pelo caso Ednardo,
pelo início da abertura, passou
pelo milagre e pela moratória,
por Figueiredo e pelas diretas,
por Sarney e por Collor.
Ainda nos anos 70, as músicas
de Sidnei Miller permitiam aos
resistentes a celebração da solidariedade e da esperança em
dias melhores em pequenos saraus, onde abrigávamos nosso
medo. Mas foi o lírico Chico, que
fazia músicas "alienadas", quem
passou a encarnar cada vez
mais a resistência ao arbítrio.
Não se tratava de nada politizado, ideologizado, de grupo. Era
a indignação de um homem de
caráter, explodindo em sátiras e
declarações contra os ditadores.
Foi ele quem rasgou o medo
quando explodiu "Apesar de Você", que se transformou na premonição da campanha pelas
eleições diretas.
Recuperadas as liberdades democráticas, ser contra a ditadura voltou a ser bom negócio. O
país foi subjugado por interesses
corporativistas. Oportunistas de
toda espécie se apresentavam
como adversários da ditadura e
exigiam sua parte no butim, em
favores ou cargos.
Chico percebeu os novos ventos, e se recolheu. Voltou às suas
músicas líricas, a celebrar a dor-
de-cotovelo, a refletir a nostalgia da idade, a celebração das filhas se tornando mulheres, os
dissabores amorosos, os valores
eternos do sentimento humano.
À medida que minha geração
vai chegando aos 50, fica cada
vez mais claro que, para os que
passaram pelos dissabores da
ditadura, que acompanharam
os primeiros passos do Brasil rumo à maioridade, Chico Buarque foi e continuará sendo a expressão maior das raízes do Brasil, a celebração maior do caráter nacional, o homem ao mesmo tempo internacional e profundamente Brasil.
Que Deus dê longa vida ao
mestre, e que seu exemplo ajude
a iluminar, cada dia, um país
que luta desesperadamente para encontrar seu rumo.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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