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OPINIÃO ECONÔMICA
A MP 232 e as décadas fracassadas
PAULO RABELLO DE CASTRO
Qual a relação entre o próximo aumento de impostos no
Brasil e a estagnação econômica
da América Latina lamentada pelo FMI no seu último relatório sobre "Estabilização e Reforma"?
Aparentemente, nenhuma. A MP
232, medida provisória editada
na virada do ano e que tanta celeuma tem criado, por elevar ainda mais a carga tributária de assalariados e profissionais autônomos organizados como empresas,
é, na aparência, apenas uma martelada a mais nos pregos que sustentam o corpo da classe média
preso à sua cruz tributária. Na
substância, porém, a MP 232 é o
sintoma de uma doença muito
mais grave, talvez incurável.
Para muita gente desatenta, a
MP não guarda nenhuma relação
com o tema investigado pelo FMI:
a "década da decepção", como foi
chamado o péssimo crescimento
da América Latina nos anos 90.
Até pelo contrário, alguns gostariam de argumentar que, ao cumprir seu dever de buscar alcançar
receitas tributárias capazes de cobrir as despesas de governo, as sucessivas administrações brasileiras estariam demonstrando sua
"responsabilidade fiscal" -aliás,
promulgada como lei no Brasil,
em 2001.
Portanto taxar a classe média
com uma carga adicional seria
manifestação de seriedade administrativa e gestão inteligente,
própria de qualquer receituário
de boa política fiscal, numa interpretação livre do receituário dos
técnicos do Fundo Monetário Internacional. De fato, tudo leva a
crer que sim. A tecnoburocracia
do FMI não chegou a apoiar o
Plano Real, em 1994 -aliás, tampouco o PT, no seu discurso de
oposição daquela época. Contudo
a efetiva estabilização dos preços
trouxe o FMI para o lado dos elogios à política econômica, principalmente quando a banca internacional voltou a emprestar fartamente ao Brasil, cujo novo modelo de endividamento público
com taxação crescente parecia estar "dando certo". As visitas freqüentes de Monsieur Camdessus,
o então diretor-gerente do FMI, às
partidas do Maracanã eram precedidas por entrevistas sobre seu
entusiasmo radiante com o modelo brasileiro.
Por trás da aparência, contudo,
a proposta de estabilização monetária, com efetiva contenção de
gasto público, exposta na medida
provisória que criou o Real, ia
perdendo substância a passos largos, à medida que a turma do "já
ganhou" tomava conta da patética cena de entusiasmo sem substância.
Estávamos, então, em plena década de 90, entre os anos 94 e 98.
A Argentina também vivia um
"momento de ouro", com a outra
experiência de estabilização que
decretara a total conversibilidade
do peso argentino ao dólar, na paridade garantida de um para um.
Mais elogios radiantes à administração econômica de Carlos Menem e Domingo Cavallo, num
contexto reformista que parecia
imbatível. Ali, também, o desequilíbrio fiscal-financeiro estaria
encomendando a crise futura,
mas o ambiente "reformista" de
então era a chave para os encômios do FMI. Por pouco a banca
não deu passagem à Argentina ao
clube dos países com "grau de investimento" (o "investment grade" das agências de rating). A Argentina chegou perto disso, antes
de despencar, de uma só pancada,
para o nível de "default", em 2001.
Quem sabe os técnicos do FMI
responsáveis pela recente investigação sobre a "década da decepção" na América Latina devessem
se aprofundar mais nos porquês
do baixo desempenho da região,
no período que vai dos anos 80 até
hoje. Teriam, então,
o desconforto duplo de, primeiro,
perceber que o Brasil e a Argentina, além da Venezuela, foram os
países que mais puxaram para
baixo as estatísticas de desempenho da região e, segundo, ficar sabendo que o próprio FMI endossou esses modelos. Aliás, nos últimos 23 anos (1980 a 2003), quando excetuado o Brasil, a América
Latina "sem Brasil" cresce bastante mais do que quando somada ao
desempenho do nosso país.
Durante todo esse período, estabilização e reformas foram deflagradas aqui, quase sempre com o
endosso do FMI, do Banco Mundial, do BID e de outras entidades
multilaterais, além de foros financeiros como o de Davos, onde Lula
acaba de recolher os mesmos perigosos elogios dos banqueiros americanos que antes incensavam autoridades do Brasil e da Argentina
durante todos os anos 90, como
pude testemunhar tantas vezes
pessoalmente.
O resultado da conta de tantos
"sucessos" tem sido um pífio desempenho, a Argentina tentando
sair do calote, oficializando-o, e o
Brasil chegando ao sétimo ano de
relação de dependência aos recursos do FMI. O que tem esse retrospecto de um desempenho sofrível,
na década passada, a ver com a
MP 232, em plena euforia de nossa recuperação econômica em
2005? Tudo! O passado ainda nos
condena, nos vigia e nos determina. Ao desperdiçar a década de
90, após a década "perdida" dos
80, acumulamos uma série de traços negativos e qualidades perversas que marcam e restringem nosso desempenho.
Para decepção dos que, hoje no
poder, se entusiasmam compreensivelmente com o atual surto de
recuperação -esse recente alívio
da prolongadíssima crise- , não
há por que esperar resultado diferente do que temos colhido quando o desempenho geral da política
econômica persiste sendo o mesmo: um país que trabalha para
sustentar a máquina do governo,
no qual impera o assistencialismo
ineficiente e bem-intencionado,
em que o gasto público tem precedência política sobre a saúde financeira das empresas e dos cidadãos tributados.
Enquanto não houver uma efetiva mudança desse paradigma
fundamental, mais MPs da espécie 232 serão editadas, sob as mais
diversas e louváveis justificativas.
Nossos governantes continuarão
sendo paparicados em reuniões de
bate-papo de celebridades internacionais, o FMI continuará
"perplexo" com os péssimos resultados de seus ótimos receituários e
na região, enquanto nós, tristes
conviventes da geração "pós-milagre", teremos de sair à busca de
um novo adjetivo para qualificar
o triste desempenho do país na
presente década, após aquela que
foi perdida e depois da que foi desperdiçada.
Paulo Rabello de Castro, 56, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também o
conselho da consultoria GRC Visão. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias,
nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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