São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

A MP 232 e as décadas fracassadas

PAULO RABELLO DE CASTRO

Qual a relação entre o próximo aumento de impostos no Brasil e a estagnação econômica da América Latina lamentada pelo FMI no seu último relatório sobre "Estabilização e Reforma"? Aparentemente, nenhuma. A MP 232, medida provisória editada na virada do ano e que tanta celeuma tem criado, por elevar ainda mais a carga tributária de assalariados e profissionais autônomos organizados como empresas, é, na aparência, apenas uma martelada a mais nos pregos que sustentam o corpo da classe média preso à sua cruz tributária. Na substância, porém, a MP 232 é o sintoma de uma doença muito mais grave, talvez incurável.
Para muita gente desatenta, a MP não guarda nenhuma relação com o tema investigado pelo FMI: a "década da decepção", como foi chamado o péssimo crescimento da América Latina nos anos 90. Até pelo contrário, alguns gostariam de argumentar que, ao cumprir seu dever de buscar alcançar receitas tributárias capazes de cobrir as despesas de governo, as sucessivas administrações brasileiras estariam demonstrando sua "responsabilidade fiscal" -aliás, promulgada como lei no Brasil, em 2001.
Portanto taxar a classe média com uma carga adicional seria manifestação de seriedade administrativa e gestão inteligente, própria de qualquer receituário de boa política fiscal, numa interpretação livre do receituário dos técnicos do Fundo Monetário Internacional. De fato, tudo leva a crer que sim. A tecnoburocracia do FMI não chegou a apoiar o Plano Real, em 1994 -aliás, tampouco o PT, no seu discurso de oposição daquela época. Contudo a efetiva estabilização dos preços trouxe o FMI para o lado dos elogios à política econômica, principalmente quando a banca internacional voltou a emprestar fartamente ao Brasil, cujo novo modelo de endividamento público com taxação crescente parecia estar "dando certo". As visitas freqüentes de Monsieur Camdessus, o então diretor-gerente do FMI, às partidas do Maracanã eram precedidas por entrevistas sobre seu entusiasmo radiante com o modelo brasileiro.
Por trás da aparência, contudo, a proposta de estabilização monetária, com efetiva contenção de gasto público, exposta na medida provisória que criou o Real, ia perdendo substância a passos largos, à medida que a turma do "já ganhou" tomava conta da patética cena de entusiasmo sem substância.
Estávamos, então, em plena década de 90, entre os anos 94 e 98. A Argentina também vivia um "momento de ouro", com a outra experiência de estabilização que decretara a total conversibilidade do peso argentino ao dólar, na paridade garantida de um para um. Mais elogios radiantes à administração econômica de Carlos Menem e Domingo Cavallo, num contexto reformista que parecia imbatível. Ali, também, o desequilíbrio fiscal-financeiro estaria encomendando a crise futura, mas o ambiente "reformista" de então era a chave para os encômios do FMI. Por pouco a banca não deu passagem à Argentina ao clube dos países com "grau de investimento" (o "investment grade" das agências de rating). A Argentina chegou perto disso, antes de despencar, de uma só pancada, para o nível de "default", em 2001.
Quem sabe os técnicos do FMI responsáveis pela recente investigação sobre a "década da decepção" na América Latina devessem se aprofundar mais nos porquês do baixo desempenho da região, no período que vai dos anos 80 até hoje. Teriam, então, o desconforto duplo de, primeiro, perceber que o Brasil e a Argentina, além da Venezuela, foram os países que mais puxaram para baixo as estatísticas de desempenho da região e, segundo, ficar sabendo que o próprio FMI endossou esses modelos. Aliás, nos últimos 23 anos (1980 a 2003), quando excetuado o Brasil, a América Latina "sem Brasil" cresce bastante mais do que quando somada ao desempenho do nosso país.
Durante todo esse período, estabilização e reformas foram deflagradas aqui, quase sempre com o endosso do FMI, do Banco Mundial, do BID e de outras entidades multilaterais, além de foros financeiros como o de Davos, onde Lula acaba de recolher os mesmos perigosos elogios dos banqueiros americanos que antes incensavam autoridades do Brasil e da Argentina durante todos os anos 90, como pude testemunhar tantas vezes pessoalmente.
O resultado da conta de tantos "sucessos" tem sido um pífio desempenho, a Argentina tentando sair do calote, oficializando-o, e o Brasil chegando ao sétimo ano de relação de dependência aos recursos do FMI. O que tem esse retrospecto de um desempenho sofrível, na década passada, a ver com a MP 232, em plena euforia de nossa recuperação econômica em 2005? Tudo! O passado ainda nos condena, nos vigia e nos determina. Ao desperdiçar a década de 90, após a década "perdida" dos 80, acumulamos uma série de traços negativos e qualidades perversas que marcam e restringem nosso desempenho.
Para decepção dos que, hoje no poder, se entusiasmam compreensivelmente com o atual surto de recuperação -esse recente alívio da prolongadíssima crise- , não há por que esperar resultado diferente do que temos colhido quando o desempenho geral da política econômica persiste sendo o mesmo: um país que trabalha para sustentar a máquina do governo, no qual impera o assistencialismo ineficiente e bem-intencionado, em que o gasto público tem precedência política sobre a saúde financeira das empresas e dos cidadãos tributados.
Enquanto não houver uma efetiva mudança desse paradigma fundamental, mais MPs da espécie 232 serão editadas, sob as mais diversas e louváveis justificativas. Nossos governantes continuarão sendo paparicados em reuniões de bate-papo de celebridades internacionais, o FMI continuará "perplexo" com os péssimos resultados de seus ótimos receituários e na região, enquanto nós, tristes conviventes da geração "pós-milagre", teremos de sair à busca de um novo adjetivo para qualificar o triste desempenho do país na presente década, após aquela que foi perdida e depois da que foi desperdiçada.


Paulo Rabello de Castro, 56, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também o conselho da consultoria GRC Visão. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br


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