São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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ARTIGO/ECONOMIA GLOBAL

Ajuste da bolha dos anos 90 pode mal ter começado

MARTIN WOLF

DO "FINANCIAL TIMES"

A economia mundial está enfrentando as consequências de duas bolhas nos preços dos ativos: a japonesa, nos anos 80, e a mundial, liderada pelos EUA, na segunda metade da década de 90. O ajuste da primeira ainda não foi concluído. O ajuste da segunda, diferentemente do que se alega, mal começou.
De acordo com essa opinião, a maior economia do mundo está conduzindo o planeta a uma recuperação duradoura, se bem que discreta, após uma recessão breve e rasa. Mas isso pode terminar por se provar não mais do que um conto de fadas para crianças assustadas. As recentes quedas nas Bolsas dos EUA e no dólar sugerem que as crianças não se deixaram convencer.
Para compreender os riscos que nos aguardam, é necessário analisar o estágio em que a economia mundial agora se encontra. Entre 1996 e 2000, a economia norte-americana gerou 40% do aumento real na demanda mundial. Enquanto a demanda doméstica real dos EUA subia em 26% ao longo do período, a produção do país teve aumento de 22%. A diferença pode ser localizada no aumento do déficit norte-americano em conta corrente, para o equivalente a 4,5% do PIB do país em 2000.
Essa expansão era insustentável e chegou ao fim no ano passado. Os sintomas do excesso eram investimento demais, poupança de menos e um grande déficit em conta corrente. Por trás desses três fenômenos estava a crença no milagre da "nova economia", demonstrada pela alta do mercado de ações, pelos imensos influxos de capital e pela alta do dólar.
Ao longo dos últimos 18 meses, a economia dos EUA -e a mundial- começou seu ajuste pós-bolha. No entanto o mais notável com relação a esse período é a modéstia do ajuste realizado.
No ano passado, os investimentos empresariais fixos nos EUA ficaram só 3,2% abaixo de seu nível em 2000. Neste ano, o Goldman Sachs prevê nova queda de apenas 7%. A resistência do consumo vem sendo notável. Apoiados pelos preços em ascensão dos imóveis e pelas baixas taxas de juros, os gastos dos consumidores subiram 3,1% no ano passado, e o Goldman Sachs prevê que devam aumentar 3,2% neste ano. O déficit financeiro do setor pessoal continua ainda próximo aos 4% do PIB, ante um superávit médio, no período posterior à Segunda Guerra, de pouco menos de 2%. A conta corrente dos EUA também mal passou por ajuste. No ano passado, equivalia a 4,1% do PIB.
O BC dos EUA, na verdade, restringiu o ajuste pós-bolha quase que só ao setor corporativo. Os preços dos ativos foram sustentados, e os empréstimos e gastos domiciliares, apoiados. A grande questão hoje é determinar se as medidas evitaram de maneira duradoura ou simplesmente adiaram o ajuste.
A resposta é que, por menos previsível que seja seu ritmo e a data em que será iniciado, é altamente implausível que o ajuste possa ser evitado para sempre. Isso implicaria a continuação de um índice extraordinariamente baixo de poupança. Também representaria um aumento explosivo no déficit em conta corrente. Se os EUA continuarem a crescer mais rápido do que o resto do mundo, no ano que vem o déficit pode atingir 5% do PIB. Os ativos estrangeiros nos EUA também poderiam subir de 20% para 50% do PIB ou mais, em cinco anos.
Isso parece inconcebível. Um desfecho mais natural seria o enfraquecimento do dólar, uma demanda interna fraca e a melhora no balanço externo. Essa mudança poderia, por sua vez, ser deflagrada por redução na disposição dos estrangeiros quanto à compra de ativos nos EUA. A vulnerabilidade é evidente. Como devedor líquido em escala gigantesca com relação ao resto do mundo, os EUA dependem de estrangeiros para sustentar o valor de seus ativos corporativos e de sua divisa.
Outros ajustes nos preços dos ativos são prováveis. Se eles coincidirem com o enfraquecimento da demanda domiciliar e se os ajustes, em especial o do dólar, forem lentos e limitados, poderiam ser benéficos para os EUA. Se a tendência de crescimento econômico fosse de 3,25% ao ano e a demanda doméstica crescesse em, digamos, 2,75%, haveria uma contração constante no déficit em conta corrente, da ordem de meio ponto percentual ao ano.

Três cenários
Em lugar de oferecer demanda adicional para o resto do mundo, os EUA estariam reduzindo a demanda mundial. A questão é de que maneira a tendência seria compensada. A zona do euro, infelizmente, só gerou crescimento de demanda doméstica superior a 3% em dois anos -1997 e 1998- desde 1993. O crescimento na demanda da região atingiu uma média de apenas 2% entre 1993 e 2001. No mesmo período, o crescimento médio da demanda japonesa foi de 1,2%.
Com o espaço de manobra do Japão limitado, muito dependeria da capacidade da zona do euro de gerar crescimento mais rápido de demanda. Sem medidas agressivas de parte do Banco Central Europeu, isso parece improvável.
Pode-se, portanto, antever três cenários prováveis a médio prazo.
Primeiro: talvez haja novos e significativos ajustes no comportamento dos consumidores ou nos preços dos ativos norte-americanos. Nesse caso, os EUA gerariam forte demanda adicional para o resto do mundo e aumentariam ainda mais o desequilíbrio nas contas domésticas e nacionais. Seria uma corrida ao precipício. Mas talvez leve alguns anos até que ele seja alcançado.
Segundo: talvez haja um ajuste suave no comportamento das famílias americanas e no dólar. O ajuste na moeda ajudaria a compensar a fraca demanda interna, forçando o resto do mundo a um ajuste. O cenário seria benéfico aos EUA, mas problemático para o resto do mundo.
Terceiro: talvez haja um ajuste brutal no futuro próximo, com uma cruel espiral de queda nos preços das ações americanas e mundiais, taxas de juros de longo prazo mais elevadas, um êxodo de capital e debilidade para o dólar. Isso forçaria uma severa redução no investimento e no consumo dos EUA e um ajuste ruim para o resto do mundo. Estaríamos no planeta do duplo mergulho.
Nenhuma das alternativas pode ser descartada no momento. Mas a segunda é a preferível, tanto para os EUA quanto para o restante do mundo. Se o dólar entrasse agora em declínio gradual, isso seria útil. Infelizmente, o cenário é róseo demais para ser plausível. A verdadeira escolha pode estar entre cair do precipício em alguns anos ou cair de um precipício mais baixo em alguns meses.
A posição de consenso não está necessariamente errada. Pode haver uma recuperação liderada pelos EUA nos próximos dois anos. Mas o ajuste pós-bolha pode ter sido só adiado. Seria melhor que ele continuasse, em ritmo moderado, agora.


Tradução de Paulo Migliacci



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