São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2000

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OPINIÃO ECONÔMICA

O consumidor e a nova agência

GESNER OLIVEIRA

Completados dez anos do Código de Defesa do Consumidor na última segunda-feira, o Brasil avançou razoavelmente na matéria. Parece oportuno perguntar qual é a relação dessa área com a da defesa da concorrência, uma vez que o governo criou um grupo de trabalho para elaborar projeto de nova agência de defesa do consumidor e da concorrência. Chama a atenção o fato de os dois temas estarem sendo tratados conjuntamente, em contraste com a legislação atual, que prevê sistemas distintos para cada um deles.
A experiência internacional é muito diversificada a esse respeito. Alguns órgãos centralizam ambas as atividades, como o Indecopi, no Peru, ou a Federal Trade Commission, nos EUA. Outros tratam apenas da defesa da concorrência, como o Departamento de Justiça, nos EUA, ou o Procompetencia, na Venezuela.
Independentemente do desenho burocrático, é evidente a proximidade entre as duas áreas. Afinal, o objetivo da defesa da concorrência é beneficiar o consumidor. Há pelo menos três ações que requerem coordenação entre os órgãos de proteção ao consumidor e os de defesa da concorrência.
Em primeiro lugar, os organismos de defesa do consumidor têm frequentemente levantado denúncias de abuso do poder de mercado. Tais reclamações precisam ser tratadas o mais rapidamente possível para evitar que o cidadão fique frustrado com o típico jogo de empurra-empurra dos órgãos do governo. Assim, a capacidade de identificar rapidamente a quem compete, por exemplo, um problema de fraude de gasolina ou um "apagão" é crucial para conferir agilidade e credibilidade ao sistema.
Em segundo lugar, as opiniões de associações de consumidores devem contribuir na tomada de decisão antitruste. Na deliberação do Cade sobre a compra da Kolynos pela Colgate, por exemplo, o depoimento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) foi muito útil.
Em terceiro lugar, os órgãos representativos dos consumidores e sobretudo os Procons poderiam ter uma participação mais ativa na fiscalização de decisões do Cade. No caso AmBev, por exemplo, o Cade decidiu proibir a imposição de contratos de exclusividade aos pontos-de-venda de cerveja. A colaboração de entidades de consumidores é valiosa quando se pretende monitorar um mercado tão abrangente e com uma rede de distribuição capilarizada. Essa ação se torna ainda mais importante nos setores regulados (por exemplo, água, luz e telefone), nos quais há, em geral, contratos de concessão com metas de qualidade e de universalização de serviços a ser monitorados e renegociados periodicamente.
Apesar das convergências apontadas entre a defesa da concorrência e a do consumidor, seria equivocado negligenciar as diferenças entre ambas as atividades. A defesa do consumidor envolve uma relação direta entre esse último e o fornecedor do produto ou serviço. Em contraste com a defesa da concorrência, requer-se mais descentralização e participação de esferas estaduais e municipais. Assim, uma agência federal não deveria inibir uma tendência saudável de surgimento e proliferação de instituições locais de proteção ao consumidor.
Por sua vez, a relação fornecedor-consumidor é, em geral, bastante desigual, em prejuízo do segundo, fazendo com que o legislador tenha optado por proteger o consumidor. Isso implica admitir um padrão de prova menos rigoroso para, por exemplo, condenar uma loja que vendeu um produto baseado em propaganda enganosa.
Diferentemente, na defesa da concorrência, a autoridade precisa demonstrar que uma determinada prática, como a da venda casada, tem, de fato, o condão de prejudicar a concorrência. A aplicação automática de critérios de uma área na outra pode gerar graves distorções. Seria contraproducente, por exemplo, se, a pretexto de combater abusos de cartéis, as autoridades passassem a utilizar exclusivamente critérios do código de defesa do consumidor. Isso geraria insegurança jurídica, inibindo o investimento e prejudicando o mercado e, em última análise, o próprio consumidor.
Note-se, por fim, a existência de eventuais conflitos que precisariam ser harmonizados. A maior exigência por parte dos consumidores em relação, por exemplo, a padrões mais elevados de segurança ou de meio ambiente de um determinado produto pode exigir maior volume de capital e, portanto, representar maiores barreiras à entrada no mercado, reduzindo a concorrência.
A união da defesa da concorrência e do consumidor sob uma mesma agência pode ser, em princípio, uma idéia interessante e com precedentes internacionais. Sua implementação prática exigirá, contudo, uma ação criteriosa, que aproveite as convergências e respeite as diferentes óticas das duas áreas de política pública.


Gesner Oliveira, 44, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-SP e ex-presidente do Cade.
E-mail - gesner@fgvsp.br


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