São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2006

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GESNER OLIVEIRA

Travesso Morales

A crise da Bolívia não tem caráter temporário, a dor de cabeça com Hugo Chávez e Evo Morales veio para ficar

HÁ UMA grande distância entre os desejos manifestados pelo governo e a realidade. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer manter uma relação cordial com a Bolívia, mas o governo Morales não pára de dar demonstrações de hostilidade. O ministro Luiz Fernando Furlan defendeu o estabelecimento de metas de crescimento de 5%-6% para os próximos quatro anos, mas a política econômica do próprio governo não emite sinais nessa direção.
O Brasil tem sido leniente com a Bolívia. A reação à nacionalização dos ativos petrolíferos, em maio, já havia sido branda, para dizer o mínimo. Em linguagem de teoria dos jogos, o ataque sistemático ao chamado "imperialismo brasileiro" parece ser a estratégia dominante da Bolívia. Isto é, qualquer que seja o grau de concessão por parte do Brasil, o governo Morales procura extrair dividendos políticos de ataques abertos aos interesses brasileiros.
Em tais condições, a posição brasileira não pode ser passiva. É preciso tranqüilizar o presidente Lula de que não se trata de invadir a Bolívia. Mas de rechaçar de forma mais contundente em todos os fóruns o grau de discricionariedade e desrespeito aos contratos (atitude que, aliás, deveria valer para todas as esferas governamentais no plano doméstico...). É um repúdio a uma ação antiinvestimento do governo daquele país em prejuízo do próprio povo boliviano.
Ao mesmo tempo, no plano econômico, é preciso ficar claro que houve uma reavaliação definitiva dos projetos com a Bolívia. A crise da Bolívia não tem caráter temporário. A dor de cabeça com o eixo Chávez-Morales veio para ficar. O Brasil precisa reavaliar sua posição em bases permanentes.
Em relação ao gás natural, isso equivale a acelerar a concretização de fontes alternativas em vários Estados do Brasil, pesquisar novas fontes e viabilizar suprimento complementar internacional de GLP. A melhor maneira de negociar com um fornecedor é manter uma linha aberta com os seus concorrentes. De preferência em viva-voz, para que fique bem claro que ninguém é insubstituível. A distância entre desejo e realidade é igualmente abismal quando se trata de projeções para o crescimento brasileiro. É louvável a preocupação do ministro Furlan em acelerar o crescimento. O problema é a incompatibilidade da proposição com o restante da política econômica. A taxa de expansão do Brasil foi de 2,4% nos últimos quatro anos. Uma expansão de 5% a 6%, como proposta pelo ministro Furlan, equivaleria a aumentar essa taxa em cerca de 130%. Em tese, isso seria possível, mas exigiria a adoção de um conjunto amplo de medidas. A receita envolveria, entre outros elementos, o aumento do investimento público, a contenção drástica de despesas correntes, a sinalização crível de desoneração tributária, a redução mais rápida dos juros e conseqüente realinhamento da taxa de câmbio.
Além disso, a retomada de investimentos em infra-estrutura exigiria uma atitude do Estado diametralmente oposta àquela de Evo Morales. O investimento de longo prazo exige a soberania das regras, e não da vontade do príncipe. No caso brasileiro, isso requer urgente definição de marcos regulatórios setoriais e o fortalecimento das agências reguladoras.
As projeções para a economia brasileira não parecem validar a meta otimista de 5%-6% nem mesmo o número de 4% para este ano, ainda defendido pelo Ministério da Fazenda. O FMI divulgou projeção de 3,6% para 2006 nesta semana. O Ipea reviu previsão original de 3,8% para 3,3% para este ano. Para 2007, o mesmo instituto prevê expansão de 3,6%.
Conforme destacado pelo FMI, tal desempenho é um dos mais fracos em termos de crescimento entre as economias emergentes. Não precisa comparar com a China. Basta dizer que a Índia cresce a um ritmo de mais do que o dobro do Brasil.
Em um mundo de crescimento e elevação continuada no preço das commodities, as disparidades entre o discurso e a realidade não se manifestam de forma imediata. Lembre-se, no entanto, e ainda de acordo com o FMI, de que as circunstâncias mundiais serão provavelmente piores nos próximos anos. Nesse novo quadro internacional, haverá menos espaço para discrepância entre as promessas e o mundo real.


GESNER OLIVEIRA, 50, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
gesner@fgvsp.br


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