São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2000

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LUÍS NASSIF


O mérito do Judiciário

Conheci as duas faces do Poder Judiciário no primeiro grande processo do qual fui alvo, por parte do então consultor-geral da República do governo Sarney, José Saulo Ramos. Conheci as interferências políticas, quando o procurador-geral Sepúlveda Pertence afastou do caso o procurador que, valentemente, opinou pelo arquivamento da ação. Sempre penso com gratidão nesse procurador, sem sequer me lembrar de seu nome. Nesse episódio, conheci a face independente do Judiciário, no comportamento do juiz José Kallás. E a face sabuja em um juiz do Rio, que teimava em alterar os termos do depoimento de minha testemunha. Mas a instituição do Judiciário foi minha garantia.
Este é um país cuja herança cultural remonta à Inquisição. Os processos de linchamento, de destruição dos que são ou pensam diferentemente, não poupam ninguém. Nos anos 70 o alvo eram os militantes de esquerda. Nos anos 80, os filhos da ditadura. Dos anos 90 em diante, o indeterminado. O "diferente" passou a ser toda pessoa suspeita de algum crime -não necessariamente culpada. Foram o japonês da Aclimação, os rapazes do bar Bodega, o cearense da Faculdade de Medicina. E também culpados óbvios, mas aos quais era negado o direito básico de serem ouvidos.
Pouco importa a natureza ou a gradação do crime. Cada qual serviu de álibi para o fortalecimento do mais execrável personagem que a indústria da mídia logrou criar nos anos 90: o justiceiro, o sujeito que se apropria e manipula a indignação popular, traz à tona o que de pior existe na natureza humana, não para buscar justiça, mas para satisfazer seus ressentimentos ou sua carreira.
A história está repleta de tipos assim, o mais ilustre dos quais o senador beberrão e corrupto que deu nome ao macartismo nos Estados Unidos.
O ponto em comum em todos esses casos foi a ausência de uma estrutura institucional que se tornasse um anteparo ao arbítrio.
O Poder Judiciário tem muito a avançar. Ainda é um poder lento, pouco transparente, cheio de feudos, sem preocupações de ordem gerencial e administrativa. Quando esses defeitos passaram a ser utilizados para a busca de saídas fora do Judiciário, no entanto, abre-se caminho para a disseminação do macartismo. E abre espaço para que juízes fracos se curvem ao chamado "clamor das ruas", permitindo a consumação de abusos contra direitos individuais.
A busca da justiça tem que se dar com um Judiciário forte. As críticas contra seus vícios têm que ser daqueles que, antes de mais nada, acreditam que só haverá respeito aos direitos individuais com um Judiciário forte. E que a melhor ferramenta para o respeito aos direitos individuais é o processo judicial aprimorado, dando todo direito às partes de serem ouvidas -seja ela um honesto dono de escola da Aclimação ou um bandido com crimes comprovados.
O maior desafio que um juiz pode enfrentar é sobrepor sua consciência individual às pressões de toda espécie -da qual a mais insidiosa é a busca da notoriedade. Por isso, ao receber a Medalha do Mérito Judiciário Ministro Nelson Hungria -outorgada ontem pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região- , dedico aos valentes, que investiram contra os linchadores e colocaram seus princípios acima do seu medo -o juiz que deu a sentença do caso Herzog; o promotor Eduardo Araújo da Silva, que pediu a libertação dos meninos acusados pelo crime do bar Bodega; a juíza Sandra de Santis de Mello, que não mandou a júri os rapazes que queimaram os pataxós; o juiz Hélder Girão, que se voltou contra os abusos de seus pares; e a jovem juíza Raecler Baldesca, que impediu que, sem base legal, se consumasse a prisão do empresário Luiz Estevão, mas que, tenho certeza, lhe aplicará a pena mais severa, quando as acusações contra ele forem comprovadas.

Internet: www.dinheirovivo.com.br

E-mail - lnassif@uol.com.br



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