São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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LIGAÇÕES PERIGOSAS/PERFIL

Banqueiro perdeu a paz há muito tempo

Marco Antônio Teixeira/Agência O Globo
O banqueiro Daniel Dantas, indiciado na semana passada pela PF sob a acusação de ter cometido crime de formação de quadrilha


LUÍS NASSIF
COLUNISTA DA FOLHA

Anos atrás, nas comemorações de 80 anos do ex-ministro Roberto Campos, no Copacabana Palace, no Rio, sentei à mesma mesa de Verônica Dantas, irmã de Daniel Dantas, o dono do banco Opportunity, indiciado na semana passada pela Polícia Federal.
Ela sabia que eu tinha levantado dados para uma biografia do banqueiro Walther Moreira Salles -também presente ao jantar. Verônica confessou que o irmão tinha enorme inveja de Moreira Salles. Não de sua capacidade de ganhar dinheiro -"Isso o Daniel sabe fazer até melhor", dizia ela-, mas da capacidade de conciliar sua vida empresarial com uma vida pessoal rica.
A história está repleta de casos de financistas ousados, de Jacques Nécker, banqueiro de Genebra que chegou a comprar metade do território de Louisiana, nos Estados Unidos, a Ponzi, o inventor do golpe das pirâmides.
Pessoas como Nécker inspirariam a geração de economistas latino-americanos que seguiram para os Estados Unidos, nos anos 80, e retornaram aos seus países, dispostos a aproveitar os novos tempos, de grande liquidez internacional e de novas ferramentas financeiras.
Uma delas foi a volta dos mercados de securitização de dívidas, que cresceu com a moratória dos países emergentes. Outra, a proliferação dos fundos "offshore", em paraísos fiscais. Finalmente, a desregulamentação das economias, com a privatização.
Nessa confluência de fatores, o financista ganha não apenas importância econômica mas também política. É em torno de seu conhecimento da última "moda" econômica que os partidos políticos montam suas bandeiras de campanha e os investidores apostam seu capital. E ele pode atuar nas duas pontas, articulando os interesses do capital com o conhecimento e a influência sobre as novas regras regulatórias.
No Chile, no começo dos anos 80, os Chicago's Boys conduziram as reformas liberalizantes e as privatizações. Exorbitaram da função, ganharam alcunha de "pirañas financeiras" e o maior deles terminou preso por Pinochet.

Surge o "golden boy"
Daniel Dantas começou a aparecer no mercado em meados de 1986, em pleno Plano Cruzado. Tinha acabado de chegar do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e tinha o aval de Mário Henrique Simonsen. Trabalhou um pouco no Bradesco, quando estava associado à seguradora Atlântica Boavista, do empresário português-carioca Almeida Braga. Quando houve a separação dos dois bancos, passou a dirigir o banco de Almeida Braga, o Icatu.
Com o Garantia e o Pactual, formaram a trinca IGP -apelido dado pelo mercado pela perfeição matemática e impossibilidade estatística com que acertavam as previsões de inflação do IGP (Índice Geral de Preços), da Fundação Getúlio Vargas, indexador básico da economia.
Ao mesmo tempo, com suas técnicas matemáticas avançadas, em pouco tempo engoliram os grandes especuladores individuais do mercado de ações, que agiam apenas em cima de informação privilegiada e poder de fogo.
Quando teve início o governo Fernando Collor de Mello (1990), Dantas já era uma figura de prestígio no mundo econômico-financeiro. Participou da famosa reunião na casa de Simonsen -com André Lara Rezende-, na qual Collor se convenceu da necessidade do bloqueio dos cruzados novos. Depois, tornou-se o economista oficial do PFL.
Na era Collor de Mello, as privatizações haviam sido feitas com "moedas podres", títulos da Sunaman (Superintendência Nacional da Marinha Mercante), da Siderbrás, ou TDAs (Títulos da Dívida Agrária) comprados a preço de banana no mercado.
O modelo persistiu no governo Itamar Franco. No governo Fernando Henrique Cardoso, não havia mais "moedas podres", mas as privatizações contavam com a participação dos fundos de pensão estatais e financiamento público -elementos essenciais para viabilizar a formação de grupos compradores.

Monta-se o xadrez
Quando começaram as negociações para a privatização do Sistema Telebrás -a "jóia da coroa"-, havia a necessidade de formação de consórcios que garantissem a competição.
Foi nesse momento que Dantas preparou seu grande salto. Primeiro, saiu do Icatu e montou seu próprio banco, o Opportunity.
Com recursos do Citigroup, montou o CVC Opportunity, um fundo "offshore", e atraiu a Previ (o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil) e a Telecom Italia. Seu curto período de vida financeira independente não havia permitido que acumulasse capital. Imaginação ele tinha de sobra.
Depois, aproximou-se do grupo tucano por meio de Elena Landau, ex-funcionária do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mulher forte, vistosa, ambiciosa, que atuou na privatização da era Collor de Mello.
Por intermédio dela, conseguiu atrair para o Opportunity a jóia mais cobiçada da constelação do Plano Real, Pérsio Arida, economista brilhante, respeitado, que havia recusado por duas vezes a possibilidade de tornar-se milionário: a primeira, quando convidado para ser a letra A do banco BBA (Bracher, Beltran e Arida); a segunda, quando convidado para presidir o Banco Garantia.
Depois, voltou ao governo, conduziu brilhantemente a mudança do Real, acabou saindo em abril de 1995, vítima de uma injustiça, amargurado, injustiçado no cumprimento de uma missão pública, enquanto via companheiros de carreira, como André Lara Rezende, enriquecerem rapidamente no mercado.
Era esse Pérsio fragilizado que aceitou o convite para trabalhar com Daniel Dantas. Foi a primeira peça do tabuleiro.
A segunda foi a montagem dos acordos para a constituição do consórcio. Havia dificuldades legais para a entrada dos fundos de pensão, pois a legislação proibia que os mesmos investidores participassem do bloco de controle de mais de uma tele fixa. Por conta desse obstáculo, Dantas montou uma teia de participações cruzadas, que apenas ele conhecia em profundidade.
Pouco antes, um grupo de empresários do Rio de Janeiro, de pouca expressão, tentou articular um consórcio com o ex-presidente do BNDES Eduardo Modiano, responsável pela primeira onda de privatizações, ainda no governo Collor, tendo como eixo central os recursos da Funcef (o fundo de pensão dos funcionários da Caixa Econômica Federal).
No meio do caminho, os empresários Carlos Jereissati, da La Fonte, e Sérgio Andrade, da Andrade Gutierrez, conseguiram cooptar os diretores da Funcef e atrair o GP Investimentos e o grupo paranaense Inepar. Era esse consórcio que o controvertido diretor da Área Internacional do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio, se dispôs a ajudar, sob o álibi de aumentar a disputa nos leilões, já que a crise internacional tinha explodido em pleno processo de privatização do Sistema Telebrás, afastando muitos candidatos.
Foi autorizado pelo governo, com a condição de não atrapalhar o consórcio do Opportunity, valendo-se da influência que tinha na Previ. Na privatização da Vale do Rio Doce, ele tinha sido o principal responsável pelo fato de a Previ ter trocado o consórcio da Votorantim pelo de Benjamin Steinbruch, fator decisivo para o desfecho do leilão.
Mal Ricardo Sérgio começou a operar, a Previ passou a colocar obstáculos ao consórcio Opportunity, a ponto de o Citibank exigir uma definição: só daria a carta de fiança ao grupo com a garantia de que os contratos seriam assinados. Foi quando o então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, ligou para Ricardo Sérgio, para abortar a sua ação. O telefonema foi gravado, e no diálogo surgiu a expressão "limite da irresponsabilidade".

A troca de envelopes
A sistemática do leilão visava impedir que um mesmo grupo arrematasse mais de uma tele. Fazia-se, então, o primeiro leilão. Definido o vencedor, ele era automaticamente proibido de participar dos leilões seguintes e suas propostas eram imediatamente destruídas.
Os acordos para a formação do consórcio do Opportunity foram assinados em junho de 1998, um mês antes do leilão. Esse contrato definiu a constituição da Timepart, a holding que, por meio de uma rede de subholdings, passaria a controlar a Brasil Telecom, com plenos poderes de gestão a Dantas. Assinavam o contrato Carla Cico, pelos italianos, Mary Lynn Putney, pelo Citigroup, e João Bosco Madera, pela Previ.
Na noite anterior à privatização, dia 27 de julho, ocorreram movimentos estranhos no Opportunity. Em geral extremamente cuidadoso com suas coisas, Dantas fez questão de deixar em uma sala aberta todas as propostas para as diversas teles.
A bolsa de apostas apontava a Bell South favorita para a compra da Telesp, a Telefónica de España, para a Tele Centro-Sul -região em que já participava com a CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações).
Sobrava a Tele Norte-Leste para o consórcio Opportunity. E, aparentemente, pouca ou nenhuma chance para o consórcio articulado por Ricardo Sérgio.
No dia do leilão, a Telefónica colocou envelopes com propostas na Telesp, na Tele Centro-Sul e na Tele Norte-Leste. A Bell South não apareceu, e os espanhóis acabaram levando a Telesp, ficando conseqüentemente de fora dos leilões seguintes.
A segunda rodada foi da Tele Centro-Sul. Inesperadamente, o Opportunity apresentou seu envelope. Surpreso, Arida virou-se para Lara Rezende, então presidente do BNDES, e comentou: "Não era para "bidarmos" [dar o lance] a Tele Centro-Sul, era para ser a Tele Norte-Leste". Só aí se deu conta de que, na noite anterior, tinha assinado um segundo documento, a pedido do próprio Dantas.
O Opportunity levou a empresa com um ágio de apenas 6%. A vitória automaticamente alijava o consórcio da competição pela Tele Norte-Leste.
Sem competidores, o grupo montado por Ricardo Sérgio levou a companhia, pagando um ágio de menos de 1% -pouco mais de R$ 3 milhões.
Terminado o leilão, Elena Landau ficou na Bolsa de Valores, Pérsio na sala de Daniel Dantas, e Maria Amália Cotrim (executiva de confiança de Dantas), junto ao baixo clero do Opportunity. Os três repetiam que haviam sido enganados. Dantas dizia que os envelopes haviam sido trocados por Carla Cico.
Nos meses seguintes, começaram a aparecer as peças do jogo. A primeira delas, um acordo secreto entre Dantas e Sérgio Andrade -que já tinham sido sócios em outras privatizações. Por ele, Dantas ficava com direito de participar do consórcio da Tele Norte Leste, batizada de Telemar. Outra, a posição da Inepar. Sem capital, a empresa tinha sido financiada pela Previ (de Bosco Madera), que adquirira debêntures. Pressionada pela própria Previ, vendeu sua parte para Dantas. Aí não havia mais consórcio -era o Opportunity sozinho.
Nos dias seguintes, o BNDES decidiu intervir no jogo. Em vez de financiar os compradores da Telemar, exigiu participar do capital, com direito a vetar decisões do conselho. A resistência durou pouco. Um dos sócios da Telemar divulgou as fitas com o grampo de conversas entre o ministro das Comunicações à época, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e o presidente do BNDES, André Lara Rezende, resultando na sua demissão.

Balanço final do xadrez
Passados sete anos, os fatos foram aparecendo, um a um. De traidora, Carla Cico tornou-se presidente da Brasil Telecom. De um salário de mera analista, provavelmente US$ 100 mil anuais, passou a ganhar por volta de US$ 5 milhões por ano. Anos atrás, o diretor da Previ João Bosco Madera foi alvo de uma reportagem da revista "Veja", que o mostrou dono de mansões, cuja propriedade estava em nome de empresas "offshore".
Em setembro do ano passado, Mary Linn foi aposentada do Citigroup, coincidentemente no mesmo momento em que o banco resolvia partir para a guerra contra Dantas.
Um inquérito no Ministério Público Federal apurou todas as operações e acordos. Mas, concluídos nove meses da privatização, como desfazer as operações? Continua perdido em alguma gaveta.
Do topo do mundo para a Polícia Federal, Dantas passa pela fase mais difícil de sua vida. Homem de vida austera, não usufrui das pompas da riqueza; de vida reclusa, não curte as pompas do poder. O que o moveu, então, a ponto de ultrapassar Mês após mês, disputa após disputa, os próprios limites da legalidade?
Na vida, há personagens tomados por uma força irresistível, trágica, uma luta permanente contra seus próprios demônios, uma insatisfação permanente com suas próprias conquistas, com seus próprios limites.
Lembrei-me do final do jantar a Roberto Campos, quando se abriram as portas do grill do Copacabana Palace, com as palavras de Verônica Dantas ainda ecoando nos meus ouvidos.
Daniel Dantas, o menino prodígio das finanças, o homem preparado para ser ministro, já tinha definido para si, desde aquela época, uma caminhada sem volta. E sua inveja do embaixador já refletia saudades da paz que ele sabia que nunca iria conquistar.


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