São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Solidariedade ou "sacro egoísmo"?

RUBENS RICUPERO

Quando o general Galtieri praticou o tresloucado gesto de invadir as Malvinas, criou para o Brasil situação de extrema delicadeza. Seria irresponsável, de nossa parte, aprovar o que não passava de temerário aventureirismo. Ainda por cima, o discurso triunfalista do anúncio da invasão respirava um nacionalismo exacerbado, inquietante para os vizinhos. Exaltava-se, por exemplo, a expedição de Belgrano ao Paraguai, vista pelos habitantes de Assunção como tentativa de reconquista e restauração do Vice-Reinado do Prata. Se a aventura dos generais e almirantes provasse compensadora, quem seria o alvo seguinte?
Não era concebível, por outro lado, que o Brasil se fechasse num mutismo de pretensa neutralidade. Afinal, ninguém escolhe sua geografia, e a Argentina continuaria a ser o nosso principal vizinho. Acabávamos de sair do prolongado e desgastante litígio sobre os rios internacionais da bacia do Prata, com a assinatura, em fins de 1979, do Acordo Tripartite Argentina-Brasil-Paraguai. Ainda convalescíamos dessas feridas, que, de vez em quando, ocasionavam reclamações sobre o enchimento do reservatório de Itaipu. A opinião portenha certamente jamais nos teria perdoado se nos tivéssemos mantido impassíveis na sua hora de perigo.
Como chefe do Departamento das Américas, eu era, na época, um dos últimos representantes de longa linha de diplomatas formados no trato dos assuntos do Prata -Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia-, complementado pela experiência direta nesses países e nos do norte da América do Sul. O mestre insuperável de todos nós havia sido meu querido chefe e imediato predecessor, o embaixador João Hermes Pereira de Araújo, cuja cultura histórica e tino diplomático só encontram paralelo no seu conhecimento da arte da era da Colônia e do Império. A ele devia-se a redescoberta, em livro argentino, de episódio sepultado no olvido dos arquivos. Pouco depois do desembarque inglês nas Malvinas, o governo da Província de Buenos Aires, em nome da Confederação Argentina, passara nota ao Brasil relatando o fato e pedindo apoio. Apesar da lentidão das comunicações marítimas de então e de que tudo se dera quando estavam ainda frescas as memórias da Guerra da Cisplatina, o ministro de Estrangeiros, filho do visconde de Cayru, respondeu, em poucas semanas, que o governo da Regência enviaria instruções a seu representante em Londres para "coadjuvar" os esforços argentinos na questão.
Esse precedente foi levado ao conhecimento de quem saberia fazer dele o melhor uso possível, um dos grandes chanceleres que tivemos, o embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro, internacionalista de primeira ordem, analista político perspicaz e seguro, com a vantagem de temperamento que caberia na descrição que fez Cotegipe de seu distante parente, o Conselheiro Saraiva: "Um baiano fleumático". Armado dessa fleuma, recém-desembarcado de viagem à Europa, Guerreiro definiu, no aeroporto, a posição brasileira em termos irretocáveis. O Brasil, desde 1833, fora o primeiro país a reconhecer os direitos da Argentina. Quanto aos meios e à oportunidade de fazer valer tais direitos, era outra história. Do começo ao fim da guerra, que envolveu para nós incidentes complicados com aeronaves e navios de guerra britânicos, mantivemos com equilíbrio posição de ativo envolvimento em favor da Argentina, que nos valeu sermos escolhidos para representar os interesses portenhos em Londres, enquanto durou a ruptura entre as duas nações.
A evocação dessa nota de pé de página da história, já com 22 anos, vem a propósito de outro exemplo mais recente, merecedor de solidariedade igual ou maior, mas no qual, em contraste, não temos estado em uma de nossas melhores horas. A intrincada negociação em que se empenha a Argentina para sair da moratória na qual a precipitou a catástrofe de 2001 vem despertando nas autoridades financeiras brasileiras reações que vão da frieza e da indiferença a um apoio minimalista e formal, apenas para poder dizer com a ponta dos lábios que não ficamos do lado dos credores, como às vezes dá a impressão. A desculpa é evitar o contágio, não criar pretexto para que os temidos mercados venham a pensar que estamos freqüentando más companhias. Ora, é óbvio que as duas situações não podiam ser mais diferentes: uma é de moratória, a outra não. Seria até irônico que aqueles que acham o mercado inigualável para tomar decisões acertadas o julgassem capaz de tão estúpida confusão.
É perfeitamente possível distinguir o problema argentino do nosso, sem que isso nos impeça de uma ativa solidariedade de princípio, mediante ações e iniciativas ao menos comparáveis ao ativismo que o país desenvolve nas mais variadas causas, nem todas de relevância semelhante à da dívida. Com efeito, conforme diz o ministro Lavagna, a escala da reestruturação da dívida argentina faz com que ela seja qualitativamente diferente de qualquer outra. São mais de US$ 100 bilhões atrasados. A cada mês que passa sem acordo, a dívida cresce, só em juros acumulados, US$ 700 milhões, cerca de 0,5% do PIB. Além disso, como a Argentina foi a menina dos olhos do FMI e dos países ricos, ela pôde emitir dívida de todo gênero. Resultado: hoje, os atrasados compreendem 152 tipos de títulos, em sete moedas e em oito jurisdições!
A solidariedade, nesse caso, deve expressar simplesmente que é do interesse primordial do Brasil, como parceiro do Mercosul, que a Argentina normalize sua situação, no interesse de todos, mas dentro de condições que não inviabilizem o pleno desenvolvimento do seu potencial. Nesse sentido, não vejo por que não seria legítimo o interesse brasileiro de que se aceite a oferta argentina de vincular a remuneração dos novos títulos ao ritmo de crescimento econômico do país. Por que não desejar que se introduza precedente saudável como esse? Não seria bom também para o Brasil? Desconfio de que nossas autoridades devem ter-se deixado impressionar por fantasmas que os credores invocam, como fez o negociador-chefe do Argentine Bond Restructuring Agency, Adam Lerrick, que perguntou: "Se a Argentina conseguir a redução maciça que está pedindo, como outros governos na América Latina poderiam justificar seus extraordinários esforços para honrar a dívida?". A pergunta é boa, mas por que deveríamos nos preocupar com assombração como essa, se nossas autoridades acreditam de fato que não precisamos de alivio nenhum?
É possível que, no fim de contas, a atitude brasileira se explique apenas por aquilo que um estadista italiano (e siciliano) do passado chamava de "il sacro egoismo". Só tem uma coisa, porém. Quando essa inspiração corre solta no seio do que ambicionava ser, mais que um arranjo de livre comércio, um mercado comum com pretensões políticas de unificar a América do Sul, ela, a falta de solidariedade, a busca míope do próprio interesse imediato, acaba por tornar-se comportamento generalizado em todos os setores, inviabilizando até o comércio, como se vê com a multiplicação de ações protecionistas. Não se queixem, "sacro egoísmo" dá nisso!


Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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