São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 2005

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ARTIGO

Classe média industrial pode desaparecer nos EUA

PAUL KRUGMAN

Em 1999, a Delphi, divisão de autopeças da General Motors, foi transformada em empresa independente. Agora, a companhia pediu concordata. Seu presidente, Robert Miller, quer que os trabalhadores da empresa aceitem cortes drásticos de salários, de uma média de US$ 27 por hora para, em alguns casos, apenas US$ 10 por hora.
Há dúvidas quanto aos motivos para que a Delphi e a indústria automobilística norte-americana tenham caído a esse ponto.
Por que os executivos da Delphi que foram demitidos receberam grandes pacotes de indenização em um período no qual a empresa solicita que os funcionários aceitem cortes de salários?
Por que, quando a General Motors era lucrativa, ela pagava dividendos tão altos, mas não investia o necessário para garantir as pensões de seus funcionários?
Mas a concordata da Delphi é mais importante do que um simples caso de fracasso empresarial e de executivos usufruindo de recompensas indevidas.
Caso a Delphi consiga reduzir os salários de seus funcionários, como pretende, e dê o calote nos pagamentos de pensões dos trabalhadores, o restante da indústria automobilística pode perfeitamente se sentir tentado -ou forçado- a fazer o mesmo.
E isso porá fim à era na qual os operários norte-americanos podiam fazer parte da classe média.
Houve uma época em que a economia americana oferecia muitos bons empregos -empregos que não faziam os trabalhadores serem ricos, mas davam a eles uma renda de classe média.
Os melhores desses bons empregos estavam nas grandes empresas industriais, especialmente no setor automobilístico.
Já faz uma geração que a maioria dos trabalhadores norte-americanos não pode usufruir de uma parcela do crescimento do país.
Os Estados Unidos são hoje muito mais ricos do que há 30 anos, mas desde o começo dos anos 1970 o pagamento do trabalhador médio mal e mal acompanhou a inflação.
O contraste entre o crescimento da riqueza nacional e a estagnação dos salários vem se tornando ainda mais extremo recentemente. Em 2004, ano que tanto o governo Bush quanto Wall Street saudaram como de ascensão econômica, a renda média real dos homens empregados em período integral caiu mais de 2% nos EUA.
Agora, os últimos vestígios da era de empregos bons e abundantes começam a desaparecer.

Compressão de benefícios
Em quase toda parte, o que vemos são empresas comprimindo salários e benefícios, alegando que não lhes resta escolha, tendo em vista a competição mundial.
Portanto, o que devemos fazer a respeito?
Durante os anos 1990, os otimistas argumentavam que educação melhor e mais treinamento para os trabalhadores poderiam restaurar a capacidade da economia de criar bons empregos.
Miller, da Delphi, usou esse argumento em sua campanha em defesa de um corte de salários. "O mundo paga aos trabalhadores do conhecimento muito mais do que paga aos trabalhadores industriais", disse. "E esse fenômeno começa a nos atingir."
Mas esse é o tipo de resposta que só funcionaria em 1999. Durante a bolha da tecnologia, era fácil acreditar que os "trabalhadores do conhecimento" tinham bons empregos garantidos.
Mas, quando a bolha estourou, eles se provaram tão vulneráveis a cortes e enxugamentos quanto os operários nas linhas de montagem. E muitos dos empregos bem pagos que desapareceram foram terceirizados para a Índia e outras economias em ascensão.
Hoje, alguns de nós gostam de enfatizar os efeitos deprimentes que o sistema disfuncional de saúde dos Estados Unidos opera sobre os salários do país.
Grande parte do problema que a indústria automobilística e outros empregadores que ainda oferecem bons empregos enfrentam é o custo de cobertura do seguro-saúde, tanto para funcionários atuais quanto para aposentados.
Se tivéssemos um sistema ao estilo canadense -entusiasticamente apoiado pelas subsidiárias canadenses das empresas do setor automobilístico norte-americano-, essa grande compressão poderia ser evitada por pelo menos algum tempo.
Uma razão a mais para irritação com os executivos do setor automobilístico é que eles jamais expressaram apoio organizado à criação de um sistema nacional de saúde, ainda que um modelo desse tipo claramente interesse às suas empresas.
E se nem a educação nem a reforma do setor de saúde bastarem para pôr fim à compressão de salários? Essa é a possibilidade que faz com que liberais defensores do livre comércio, como eu, se sintam especialmente nervosos, porque é o momento em que o protecionismo adentra o palco.
Quando os executivos dizem que precisam cortar salários para enfrentar a concorrência estrangeira, os trabalhadores têm todo o direito de perguntar por que eles não cortam a concorrência estrangeira em vez disso.
Espero que a situação não chegue a esse ponto. Mas não adianta nada negar os fatos. A classe média operária dos Estados Unidos vêm sofrendo erosão há uma geração e pode estar a caminho de desaparecer. Alguma coisa precisa ser feita.


Paul Krugman, economista, é colunista do "New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi publicado originalmente no "New York Times"

Tradução de Paulo Migliacci


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