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São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

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ARTIGO

A queda do dólar e seus riscos

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

O dólar está caindo. Isso não é surpresa. A surpresa é só a forma pela qual ele vem caindo. Os déficits em conta corrente e a pressão deflacionária estão sendo transferidos dos EUA em direção a outros países. Entre aqueles que correm o maior risco está a já debilitada zona do euro.
Desde o começo de 2002, o índice cambial amplo do Federal Reserve (o banco central norte-americano) mostra queda de 12% para o dólar, na média ponderada do comércio internacional. Para John Snow, secretário do Tesouro americano, o declínio vem sendo "ordenado". Mas o que parece ordenado nos EUA tem aparência muito diferente em outros lugares.
Desde janeiro de 2002, o dólar perdeu 31% de seu valor diante do dólar australiano, 30% diante do euro, 19% diante do iene e da libra esterlina e 18% diante do dólar canadense. No entanto, diante do yuan chinês o dólar não se moveu. O dólar de Hong Kong e o ringgit malaio também continuam estáticos. Mas tampouco a rúpia indiana, o won sul-coreano e os dólares de Taiwan e de Cingapura, para não falar do rublo russo, se moveram muito.
O que está acontecendo? "Intervenção", é a resposta. O mundo voltou à era de Bretton Woods, encerrada em 1971, quando as taxas de câmbio flutuantes foram adotadas de modo generalizado. Mas o fez apenas parcialmente.
Peter Garber, do Deutsche Bank, ofereceu um elegante relato sobre o novo sistema monetário mundial, em uma conferência do FMI (Fundo Monetário Internacional). Na era de Bretton Woods, havia apenas dois grupos de países: os EUA, de um lado, e todos os demais, do outro. Os EUA se ajustavam às políticas dos demais, até que, em 1971, deixaram abruptamente de fazê-lo. Hoje, no entanto, a economia mundial está dividida em três partes: os EUA são a primeira; na terminologia de Garber, a "zona da conta de capital" é a segunda; e a "a zona da conta de comércio externo" é a terceira. Os países na "zona da conta de capital" têm por objetivo a estabilidade monetária e optam por permitir que o fluxo de capitais determine as taxas de câmbio. Os países na "zona da conta de comércio externo" optam por manipular as taxas de câmbio.
O objetivo dos países da "zona da conta de comércio externo" é crescimento. Nas palavras de Garber, "o desequilíbrio fundamental no mundo não está nas taxas de câmbio. O desequilíbrio fundamental é a enorme oferta de mão-de-obra na Ásia à espera de entrar na economia globalizada. A taxa de câmbio é apenas a válvula que controla o ritmo de entrada". A fim de estimular o crescimento, os mercantilistas asiáticos emprestam dinheiro aos EUA para que os americanos adquiram suas exportações.
Considerem as implicações dessa divisão tripla na economia mundial. Os EUA registram déficits em conta corrente de 5% de seu PIB (Produto Interno Bruto). À medida que esses déficits se acumulam, o país vai se tornando um grande devedor. No final de 2002, o passivo líquido americano equivalia a 25% do PIB.
O déficit crescente parece ser estrutural: de 1990 para cá, as exportações dos EUA vêm crescendo 5,7% ao ano, enquanto as importações registram crescimento de 8,8%. Para evitar que a deterioração continue, uma alternativa seria que os EUA crescessem mais devagar do que o resto do mundo. Mas Mark Cliffe, do banco ING, argumenta que seria preciso uma queda de 11% no PIB americano, em relação à tendência vigente, para reduzir o déficit em conta corrente a 2% do PIB. Não é necessário dizer que os EUA não tolerariam uma queda dessas. Há dois caminhos de fuga possíveis, para evitar a armadilha recessiva: depreciação da taxa real de câmbio e crescimento mais rápido no resto do mundo. Segundo Cliffe, seria necessário um aumento de 36% no PIB do resto do mundo, uma queda de 34% do dólar ou alguma combinação das duas coisas para reduzir o déficit em conta corrente a 2% do PIB.
Um aumento assim no PIB mundial é inviável. A desvalorização também está bloqueada, parcialmente, pelos mercantilistas asiáticos. Aquisições de títulos americanos por governos estrangeiros financiaram um quarto do déficit dos EUA. Entre 2002 e setembro de 2003, as reservas cambiais asiáticas cresceram US$ 546 bilhões. A pressão sobre o dólar se deslocou dos asiáticos para a "zona da conta de capital".
Imaginem, como uma primeira possibilidade, que isso continue, dando ao dólar uma depreciação semelhante à sugerida por Cliffe. O euro estaria cotado a mais de US$ 1,60. Seria receita de deflação na zona do euro.
A segunda possibilidade é que os membros da "zona da conta de capital" se unam aos mercantilistas asiáticos no apoio ao dólar. As consequências monetárias seriam expansivas. Mas, ainda que uma expansão como essa pudesse ser bem-vinda, seria insuficiente para reduzir o déficit dos EUA. O resultado seria expansão econômica mundial mais rápida, terminando provavelmente com aquecimento global e colapso do dólar.
A terceira (e mais benigna) possibilidade seria que os asiáticos optassem por não continuar com esse jogo por tempo demais. O acúmulo de reservas é excessivo, e a reação política dos EUA à alta do déficit está se intensificando. Esses países poderiam permitir a alta de suas moedas, não dramaticamente, mas por uma boa margem ante o dólar.
Há uma última possibilidade: a repetição do choque de Nixon. Com a aproximação das eleições, o presidente George W. Bush poderia anunciar uma sobretaxa generalizada para os importados, a ser revogada quando as demais moedas se valorizarem diante do dólar. A detenção de Saddam Hussein reduz a possibilidade de que isso seja tentado. Mas não é inconcebível. Em algum ponto, o novo jogo de Bretton Woods terá de acabar. A questão é saber quando. Até lá, as pessoas na "zona da conta de capital" precisam compreender que um maremoto cambial está sendo desviado para a direção delas.


Tradução de Paulo Migliacci


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