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ARTIGO
A queda do dólar e seus riscos
MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"
O dólar está caindo. Isso
não é surpresa. A surpresa
é só a forma pela qual ele vem
caindo. Os déficits em conta corrente e a pressão deflacionária estão sendo transferidos dos EUA
em direção a outros países. Entre
aqueles que correm o maior risco
está a já debilitada zona do euro.
Desde o começo de 2002, o índice cambial amplo do Federal Reserve (o banco central norte-americano) mostra queda de 12% para o dólar, na média ponderada
do comércio internacional. Para
John Snow, secretário do Tesouro
americano, o declínio vem sendo
"ordenado". Mas
o que parece ordenado nos EUA
tem aparência
muito diferente
em outros lugares.
Desde janeiro de
2002, o dólar perdeu 31% de seu
valor diante do
dólar australiano,
30% diante do euro, 19% diante do
iene e da libra esterlina e 18% diante do dólar canadense. No entanto, diante do yuan chinês o dólar
não se moveu. O dólar de Hong
Kong e o ringgit malaio também
continuam estáticos. Mas tampouco a rúpia indiana, o won sul-coreano e os dólares de Taiwan e
de Cingapura, para não falar do
rublo russo, se moveram muito.
O que está acontecendo? "Intervenção", é a resposta. O mundo
voltou à era de Bretton Woods,
encerrada em 1971, quando as taxas de câmbio flutuantes foram
adotadas de modo generalizado.
Mas o fez apenas parcialmente.
Peter Garber, do Deutsche
Bank, ofereceu um elegante relato
sobre o novo sistema monetário
mundial, em uma conferência do
FMI (Fundo Monetário Internacional). Na era de Bretton Woods,
havia apenas dois grupos de países: os EUA, de um lado, e todos
os demais, do outro. Os EUA se
ajustavam às políticas dos demais, até que, em 1971, deixaram
abruptamente de fazê-lo. Hoje, no
entanto, a economia mundial está
dividida em três partes: os EUA
são a primeira; na terminologia
de Garber, a "zona da conta de capital" é a segunda; e a "a zona da
conta de comércio externo" é a
terceira. Os países na "zona da
conta de capital" têm por objetivo
a estabilidade monetária e optam
por permitir que o
fluxo de capitais
determine as taxas
de câmbio. Os países na "zona da
conta de comércio
externo" optam
por manipular as
taxas de câmbio.
O objetivo dos
países da "zona da
conta de comércio
externo" é crescimento. Nas palavras de Garber, "o
desequilíbrio fundamental no
mundo não está
nas taxas de câmbio. O desequilíbrio fundamental
é a enorme oferta de mão-de-obra
na Ásia à espera de entrar na economia globalizada. A taxa de
câmbio é apenas a válvula que
controla o ritmo de entrada". A
fim de estimular o crescimento,
os mercantilistas asiáticos emprestam dinheiro aos EUA para
que os americanos adquiram suas
exportações.
Considerem as implicações dessa divisão tripla na economia
mundial. Os EUA registram déficits em conta corrente de 5% de
seu PIB (Produto Interno Bruto).
À medida que esses déficits se
acumulam, o país vai se tornando
um grande devedor. No final de
2002, o passivo líquido americano
equivalia a 25% do PIB.
O déficit crescente parece ser estrutural: de 1990 para cá, as exportações dos EUA vêm crescendo
5,7% ao ano, enquanto as importações registram crescimento de
8,8%. Para evitar que a deterioração continue, uma alternativa seria que os EUA crescessem mais
devagar do que o resto do mundo.
Mas Mark Cliffe, do banco ING,
argumenta que seria preciso uma
queda de 11% no PIB americano,
em relação à tendência vigente,
para reduzir o déficit em conta
corrente a 2% do PIB. Não é necessário dizer que os EUA não tolerariam uma
queda dessas. Há
dois caminhos de
fuga possíveis, para evitar a armadilha recessiva: depreciação da taxa
real de câmbio e
crescimento mais
rápido no resto do
mundo. Segundo
Cliffe, seria necessário um aumento
de 36% no PIB do
resto do mundo,
uma queda de
34% do dólar ou
alguma combinação das duas coisas para reduzir o déficit em conta
corrente a 2% do PIB.
Um aumento assim no PIB
mundial é inviável. A desvalorização também está bloqueada, parcialmente, pelos mercantilistas
asiáticos. Aquisições de títulos
americanos por governos estrangeiros financiaram um quarto do
déficit dos EUA. Entre 2002 e setembro de 2003, as reservas cambiais asiáticas cresceram US$ 546
bilhões. A pressão sobre o dólar se
deslocou dos asiáticos para a "zona da conta de capital".
Imaginem, como uma primeira
possibilidade, que isso continue,
dando ao dólar uma depreciação
semelhante à sugerida por Cliffe.
O euro estaria cotado a mais de
US$ 1,60. Seria receita de deflação
na zona do euro.
A segunda possibilidade é que
os membros da "zona da conta de
capital" se unam aos mercantilistas asiáticos no apoio ao dólar. As
consequências monetárias seriam
expansivas. Mas, ainda que uma
expansão como essa pudesse ser
bem-vinda, seria insuficiente para
reduzir o déficit dos EUA. O resultado seria expansão econômica
mundial mais rápida, terminando
provavelmente com aquecimento
global e colapso do dólar.
A terceira (e mais benigna) possibilidade seria que os asiáticos
optassem por não
continuar com esse jogo por tempo
demais. O acúmulo de reservas é excessivo, e a reação
política dos EUA à
alta do déficit está
se intensificando.
Esses países poderiam permitir a alta de suas moedas,
não dramaticamente, mas por
uma boa margem
ante o dólar.
Há uma última
possibilidade: a
repetição do choque de Nixon. Com a aproximação das eleições, o presidente
George W. Bush poderia anunciar
uma sobretaxa generalizada para
os importados, a ser revogada
quando as demais moedas se valorizarem diante do dólar. A detenção de Saddam Hussein reduz
a possibilidade de que isso seja
tentado. Mas não é inconcebível.
Em algum ponto, o novo jogo de
Bretton Woods terá de acabar. A
questão é saber quando. Até lá, as
pessoas na "zona da conta de capital" precisam compreender que
um maremoto cambial está sendo
desviado para a direção delas.
Tradução de Paulo Migliacci
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