São Paulo, sexta-feira, 19 de julho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Greenspan cada vez melhor

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

O agravamento da crise de confiança no mercado de ações nos EUA permitiu que a opinião pública mundial pudesse comparar a estatura pública dos dois maiores líderes da sociedade americana de hoje. De um lado, o ideológico presidente George W. Bush, eleito de uma forma conflituosa para conduzir uma nova revolução contra a presença do Estado na economia. Do outro, o pragmático Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve e voz de inquestionável qualidade e liderança nos meios econômicos mundiais de hoje. No espaço de dois dias, esses personagens fizeram manifestações públicas importantes sobre a crise ética que atinge as grandes corporações americanas e seus dirigentes.
As palavras do presidente americano, como sempre, foram vazias e de uma irrelevância abissal e provocaram um tombo terrível nas cotações das ações. Um verdadeiro fiasco. A CNN mostrou ao vivo seu discurso em metade das telas das televisões ao longo do mundo enquanto a outra acompanhava, ao vivo, a queda vertiginosa do índice Dow Jones da Bolsa de Nova York. Uma demonstração clara de uma nova postura, muito mais crítica, da imprensa em relação ao sr. Bush.
Já o discurso de Greenspan no Senado americano, embora não tenha sido suficiente para interromper a queda das ações, chamou a atenção de todos por sua concisão e profundidade. Ele mostrou que a maior economia do mundo continua a recuperar-se da pequena recessão do ano passado e que, se esse processo não for interrompido pela crise de confiança dos investidores, tudo estará normalizado, a partir do próximo ano. Declarou ainda que o FED não elevará os juros do mercado monetário enquanto não houver confiança total na consolidação dessa recuperação.
Em relação ao ajuste de contas com as falcatruas contábeis dos últimos anos, ele foi muito claro em seu diagnóstico: falta de regulação dos mercados para fazer frente aos instrumentos desenvolvidos recentemente de busca do enriquecimento rápido e fácil por parte dos executivos das corporações americanas. Segundo Greenspan, a ambição é uma característica histórica dos homens de mercado e não um traço do administrador de hoje. A diferença fica por parte das facilidades existentes na regulação dos mercados para atingir esses objetivos ilícitos.
A visão realista do presidente do FED em relação à necessidade de marcos regulatórios claros e atualizados constantemente para se contraporem à prática de atos incorretos de gestão se opõe à postura ideológica e simplista do presidente Bush. Aliás, o estabelecimento de regras claras sobre a remuneração dos diretores de empresas baseadas nas chamadas stock options foi torpedeado pela administração americana atual, sob o argumento de que se tratava de uma interferência indevida do governo nas atividades privadas. Só agora, depois da porta arrombada, é que o legislativo americano agiu no sentido de regular essa nova forma de remuneração profissional.
Esses fatos devem servir de reflexão para aqueles que acreditam ser o arranjo das economias de mercado o mais eficiente na organização do mundo moderno. A liberdade dos agentes privados na condução dos negócios deve ser a dinâmica principal nas decisões econômicas. Mas a existência de um aparato regulatório deve sempre estar presente para evitar o aparecimento de dinâmicas irracionais em alguns momentos, quase sempre não previsíveis, da história. Uma das forças do pensamento keynesiano foi exatamente a identificação dessas distorções do funcionamento dos mercados e da necessidade da criação de mecanismos institucionais de proteção. Infelizmente, seus pensamentos e propostas foram distorcidos durante as décadas seguintes ao pós-guerra e acabaram por gerar uma escola de pensamento econômico chamado de neo-keynesianismo -que acabou por desqualificar a intervenção do Estado na economia. A volta do império do mercado e as ilusões criadas pela ação de Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 80, podem ser identificados como as origens da crise atual.
Se o liberalismo extremado é uma distorção inerente ao sistema capitalista, a força de uma sociedade democrática como a americana representa um antídoto muito forte. Os escândalos que estão explodindo nos EUA e Europa estão criando uma reação muito forte na sociedade e forçando uma ação efetiva de correção dos excessos das últimas décadas. Nesse sentido, as palavras de Greenspan no Senado americano são muito importantes, na medida em que dão credibilidade a essa catarse das forças negativas do sistema econômico liberal. O novo marco regulatório, que se discute atualmente nos Estados Unidos, vai dar um novo vigor ao sistema capitalista baseado na propriedade coletiva das empresas. Os custos em termos sociais e econômicos serão enormes, mas não se repetirá a catástrofe dos anos 30 exatamente pela existência de mecanismos de defesa criados, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.
Em um futuro não previsível, quando o arcabouço de proteção que está sendo criado atualmente ficar velho e ultrapassado, talvez uma nova crise como a que estamos vivendo venha ocorrer novamente. Isso é da natureza do sistema de economia de mercado e que foi confundido no passado como uma tendência inexorável ao colapso e a sua autodestruição.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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