São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Plano B para a Argentina

LUCIANO COUTINHO

O medo de um desfecho terrível explica a tenaz resistência do governo argentino. A população, sabendo que será a vítima principal, também não quer a implosão do sistema cambial. Compreende-se, assim, como o sistema político engoliu o amarguíssimo programa de "déficit zero" impensável meses atrás. Este é, realisticamente, contraproducente e infactível, pois agravará ainda mais a recessão que já se vem aprofundando.
Pendurado por um fio e graças à ousadia do Ministério da Economia, que forçou por todos os meios o anúncio de um pacote de ajuda externa, o sistema se acalmou nesta semana, precariamente, numa posição muito frágil. A sangria de reservas e depósitos parou momentaneamente à espera do anunciado apoio. Mas a situação é tênue e, se a ajuda demorar, a degringolada poderá vir já nesta próxima semana.
Em outro córner, a banca internacional permanece cética. A grande maioria, justificadamente, não acredita mais na sustentabilidade do sistema cambial da Argentina. O déficit externo em conta corrente ganhou dimensão estrutural, dada a sobrevalorização da taxa de câmbio e o pesado fluxo de remessas para o serviço da massa de dívidas acumuladas. De outro lado, a solvência da dívida doméstica, dolarizada, também ficou insuportável a médio prazo em decorrência de juros elevadíssimos. Nessas condições, não faz nenhum sentido empenhar mais crédito para salvar um doente terminal. Apenas os bancos mais comprometidos (JP Morgan e os espanhóis) -para salvarem a própria pele- defendem uma grande operação de salvamento. Empenharam-se por isso na campanha de lobby político em prol do apoio à Argentina.
O governo Bush aparentemente mudou sua posição inflexível. Depois de ter decidido "deixar quebrar para depois ajudar", o Tesouro americano sinalizou ao Fundo Monetário Internacional que deveria dar uma "última chance" à Argentina. Um novo pacote financeiro está sendo urdido e pode ser anunciado nos próximos dias. O FMI despejaria cerca de US$ 6 bilhões aos quais se somariam US$ 2 bilhões do BID e do Bird, US$ 2,5 bilhões dos bancos privados e mais recursos dos governos do G-7 (destacando-se uma contribuição substancial da Espanha). No total, seria algo próximo a US$ 13 bilhões. Não há, contudo, motivo para comemorações.
O diagnóstico dos bancos não mudou, e o ceticismo permanece. Para o governo dos EUA, há uma dose impalatável de moral "hazard" envolvida nessa operação. Se for apenas para manter, artificialmente, um sistema moribundo, é muito provável que venha a se inviabilizar a montagem do pacote de ajuda. Será o caos.
De outro lado, se formulado como um suporte efetivo para mudar o sistema monetário e para criar um novo regime cambial, é possível que o apoio se concretize em escala convincente. Mas, neste caso, o novo acordo será trabalhoso e sua formulação, controversa, dadas as diferenças entre as visões da equipe do FMI e do governo americano. O Fundo quer garantias estritas de cumprimento de duras metas fiscais (o que é um equívoco nas atuais circunstâncias, pois agravará a recessão), e o Tesouro dos EUA exige que os novos recursos fiquem congelados na forma de "reservas argentinas" para não dar porta de saída aos bancos privados (dos quais exige dinheiro novo).
Um desenho plausível da mudança teria os seguintes contornos: 1) sobrevida (possível ?) do "status quo" até as eleições de outubro, 2) preparação de um regime de flutuação do peso, com desvalorização controlada, evitando-se um "overshooting" agudo, o que exigiria forte restrição quantitativa da liquidez e juros inicialmente bastante elevados sobre ativos em pesos, 3) manutenção de algum grau de conversibilidade, viabilizado pelo aporte de recursos externos em grande escala, 4) reestruturação negociada das dívidas externa e interna com "writte off" e ampliação de prazos; 5) os ganhos com essas reestruturações permitiriam ao Tesouro argentino absorver parcialmente o forte impacto negativo da depreciação cambial sobre a situação patrimonial das famílias e empresas (as dívidas privadas seriam refinanciadas com taxa de câmbio arbitrada, prazos alongados e juros sustentáveis). Esse é o plano B, possível, doloroso sem dúvida, mas menos ruim do que uma quebradeira caótica. A intensidade das perdas e dos sacrifícios pode estar sendo, a esta hora, calibrada na frieza dos gabinetes do FMI e do Departamento do Tesouro.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985/88).



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