|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Tempo para trabalhar, tempo para viver
RUBENS RICUPERO
Afinal a economia moderna
precisa de mais ou menos tempo
de trabalho? Nos Estados Unidos
cada vez se trabalha mais e pouca
gente dispõe de tempo livre, desmentindo as previsões de que a
automação preparava futuro
com mais ócio para todos. Lá
mesmo, porém, e em muitos outros países, aumenta assustadoramente o número de contratos
de tempo parcial. A contradição é
aparente, pois a lógica, no fundo,
é a mesma: comprimir ao máximo o custo do trabalho; no primeiro caso, reduzindo o número
de homens e aumentando o de
horas, no segundo, contratando
mais homens por menos horas.
Tudo isso é expressão da mais
profunda metamorfose ocorrida
no mundo do trabalho em 200
anos: a tendência à redução drástica do emprego em tempo integral de duração indeterminada.
Esse tipo de relação empregatícia
se havia tornado o padrão normal do regime de assalariado,
que, graças à Revolução Industrial, abolira e tomara o lugar das
corporações de ofício medievais.
Ele começa agora a sucumbir às
exigências da flexibilização do
mercado de trabalho, invertendo
longa série de conquistas do movimento sindical. Tais conquistas
haviam primeiro transformado o
contrato de trabalho, de individual em coletivo; em seguida, tinham protegido o trabalhador,
introduzindo algum equilíbrio na
relação contratual.
Chegara-se, assim, à situação
em que o empregado aceitava alto grau de subordinação e controle disciplinar da parte do empregador, mas deste recebia, em troca, nível de estabilidade elevada,
bem como garantias e compensações sociais.
A tendência atual é para tipos
de relação que erodem, quer a estabilidade e as garantias, quer a
subordinação, ou ambos: os contratos de duração determinada,
de tempo parcial, de substituição
provisória, a terceirização, a subcontratação, a relação que os italianos denominam "parassubordinação" e definem como "colaboração coordenada e contínua"
etc.
Na França, hoje em dia, oito de
cada dez contratações se fazem
na base da precariedade: duração
determinada ou substituição provisória. No Reino Unido, 50% dos
contratos de trabalho duram menos de 15 meses.
O problema é que se tem privilegiado apenas a flexibilidade ligada à produção, que dá ao empresário o poder de despedir e reduzir salários. Pouca atenção se deu
à flexibilidade ligada às necessidades pessoais do trabalhador,
que lhe permite, por meio da educação e outros meios, adaptar-se
às transformações produtivas.
A consequência é que, buscando "os fatos por trás da moda" (título de editorial do "Financial Times" sobre o assunto), muita gente começa a desconfiar de que, assim como ocorre com a mania
das fusões de empresas, há na flexibilidade aspectos de modismo
exagerado que escondem inconvenientes graves.
Quem resume melhor o sentido
do debate é o ex-secretário do
Trabalho dos EUA Robert Reich,
ao reconhecer que a flexibilidade
pode ser boa para os negócios a
curto prazo, mas que generaliza
sentimentos de insegurança que
não favorecem o crescimento. De
fato, a fim de realizar seus projetos, a maioria das pessoas precisa
contrair dívidas, algo fora do alcance de quem não pode prever o
futuro devido à precariedade.
Essa última acarreta, dessa maneira, problemas impressionantes: 1º) o financiamento para a casa própria é impossível para
quem vive de contratos precários;
2º) o mesmo acontece com o acesso a crédito para automóvel ou financiamentos bancários em geral
(na Inglaterra, 1,5 milhão de famílias não têm acesso a serviços
financeiros básicos como as contas bancárias e 4,4 milhões só têm
acesso limitado); 3º) a insegurança quanto ao futuro leva ao aumento exagerado da poupança e
à extrema relutância em consumir e assim ativar a economia;
4º) o estresse consequente à precariedade aumenta os problemas
de saúde e destrói o espírito de solidariedade à empresa ou à comunidade.
O argumento em favor da flexibilidade absoluta provém da teoria do equilíbrio geral, segundo a
qual a economia de mercado só
pode funcionar de maneira ótima
se todos os mercados, o do trabalho, assim como o de bens ou de
capitais, flutuarem livremente de
acordo com a oferta e a demanda.
Nesse ótica, as pessoas deveriam
comportar-se como mercadorias,
o que Marx já tinha antecipado,
ao comentar que o capitalismo
reduzia tudo a mercadorias. Sucede, porém, que os seres humanos teimam em não ser tratados
como coisas. E, ao reagir à precariedade, preferindo economizar
para dias incertos a consumir,
acabam por frustrar o tal funcionamento ótimo dos mercados.
Pois, desse modo, introduzem viés
adicional de reforço à anemia
econômica de muitos países industrializados, já desacelerados
por fatores como a obsessão antiinflacionária e o declínio demográfico. É por isso que, cedo ou
tarde, são fadadas ao fracasso todas as tentativas de escravizar o
homem à economia, em lugar de
criar economia que esteja a serviço do homem.
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
Texto Anterior: Regiões antigas têm mais desemprego Próximo Texto: Tendências Internacionais - Gilson Schwartz: Economia mundial se purga na crise Índice
|