São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Tempo para trabalhar, tempo para viver

RUBENS RICUPERO
Afinal a economia moderna precisa de mais ou menos tempo de trabalho? Nos Estados Unidos cada vez se trabalha mais e pouca gente dispõe de tempo livre, desmentindo as previsões de que a automação preparava futuro com mais ócio para todos. Lá mesmo, porém, e em muitos outros países, aumenta assustadoramente o número de contratos de tempo parcial. A contradição é aparente, pois a lógica, no fundo, é a mesma: comprimir ao máximo o custo do trabalho; no primeiro caso, reduzindo o número de homens e aumentando o de horas, no segundo, contratando mais homens por menos horas.
Tudo isso é expressão da mais profunda metamorfose ocorrida no mundo do trabalho em 200 anos: a tendência à redução drástica do emprego em tempo integral de duração indeterminada. Esse tipo de relação empregatícia se havia tornado o padrão normal do regime de assalariado, que, graças à Revolução Industrial, abolira e tomara o lugar das corporações de ofício medievais.
Ele começa agora a sucumbir às exigências da flexibilização do mercado de trabalho, invertendo longa série de conquistas do movimento sindical. Tais conquistas haviam primeiro transformado o contrato de trabalho, de individual em coletivo; em seguida, tinham protegido o trabalhador, introduzindo algum equilíbrio na relação contratual.
Chegara-se, assim, à situação em que o empregado aceitava alto grau de subordinação e controle disciplinar da parte do empregador, mas deste recebia, em troca, nível de estabilidade elevada, bem como garantias e compensações sociais.
A tendência atual é para tipos de relação que erodem, quer a estabilidade e as garantias, quer a subordinação, ou ambos: os contratos de duração determinada, de tempo parcial, de substituição provisória, a terceirização, a subcontratação, a relação que os italianos denominam "parassubordinação" e definem como "colaboração coordenada e contínua" etc.
Na França, hoje em dia, oito de cada dez contratações se fazem na base da precariedade: duração determinada ou substituição provisória. No Reino Unido, 50% dos contratos de trabalho duram menos de 15 meses.
O problema é que se tem privilegiado apenas a flexibilidade ligada à produção, que dá ao empresário o poder de despedir e reduzir salários. Pouca atenção se deu à flexibilidade ligada às necessidades pessoais do trabalhador, que lhe permite, por meio da educação e outros meios, adaptar-se às transformações produtivas.
A consequência é que, buscando "os fatos por trás da moda" (título de editorial do "Financial Times" sobre o assunto), muita gente começa a desconfiar de que, assim como ocorre com a mania das fusões de empresas, há na flexibilidade aspectos de modismo exagerado que escondem inconvenientes graves.
Quem resume melhor o sentido do debate é o ex-secretário do Trabalho dos EUA Robert Reich, ao reconhecer que a flexibilidade pode ser boa para os negócios a curto prazo, mas que generaliza sentimentos de insegurança que não favorecem o crescimento. De fato, a fim de realizar seus projetos, a maioria das pessoas precisa contrair dívidas, algo fora do alcance de quem não pode prever o futuro devido à precariedade.
Essa última acarreta, dessa maneira, problemas impressionantes: 1º) o financiamento para a casa própria é impossível para quem vive de contratos precários; 2º) o mesmo acontece com o acesso a crédito para automóvel ou financiamentos bancários em geral (na Inglaterra, 1,5 milhão de famílias não têm acesso a serviços financeiros básicos como as contas bancárias e 4,4 milhões só têm acesso limitado); 3º) a insegurança quanto ao futuro leva ao aumento exagerado da poupança e à extrema relutância em consumir e assim ativar a economia; 4º) o estresse consequente à precariedade aumenta os problemas de saúde e destrói o espírito de solidariedade à empresa ou à comunidade.
O argumento em favor da flexibilidade absoluta provém da teoria do equilíbrio geral, segundo a qual a economia de mercado só pode funcionar de maneira ótima se todos os mercados, o do trabalho, assim como o de bens ou de capitais, flutuarem livremente de acordo com a oferta e a demanda. Nesse ótica, as pessoas deveriam comportar-se como mercadorias, o que Marx já tinha antecipado, ao comentar que o capitalismo reduzia tudo a mercadorias. Sucede, porém, que os seres humanos teimam em não ser tratados como coisas. E, ao reagir à precariedade, preferindo economizar para dias incertos a consumir, acabam por frustrar o tal funcionamento ótimo dos mercados. Pois, desse modo, introduzem viés adicional de reforço à anemia econômica de muitos países industrializados, já desacelerados por fatores como a obsessão antiinflacionária e o declínio demográfico. É por isso que, cedo ou tarde, são fadadas ao fracasso todas as tentativas de escravizar o homem à economia, em lugar de criar economia que esteja a serviço do homem.



Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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