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OPINIÃO ECONÔMICA
Sérgio
RUBENS RICUPERO
Quando sérgio Vieira de
Mello morreu, eu me encontrava em lugar remoto, a 120 km
de Maceió e, a princípio, não acreditei. Só cheguei a Genebra após o
enterro e a missa, em 28 de agosto
de 2003, na igreja Saint Paul, em
Grange Canal. Bem mais tarde,
tomei conhecimento dos belos textos lidos na ocasião, o primeiro,
contendo também palavras de
Annie, sua mulher, escrito por
nosso querido amigo José de Freitas Castro, o segundo, por Flávio
da Silveira, seu amigo de infância.
Flávio vive e trabalha em Genebra há muitos anos. É homem de
cultura, sensibilidade, discrição e
inteligência penetrante. Seu pai,
evocado no texto, padrinho de Sérgio, foi um dos maiores ministros
das Relações Exteriores que teve o
Brasil, o inesquecível embaixador
Antonio Francisco Azeredo da Silveira.
Nenhum outro testemunho captou como o de Flávio o segredo do
poder de sedução de Sérgio. Nenhum outro alçou-se a esse nível
de emoção contida, recordação
pungente, análise perceptiva e,
acima de tudo, verdade profunda,
que só pode nascer de uma amizade afetuosa. Achei que ele não podia ficar desconhecido do público
brasileiro e, com a permissão de
Flávio, traduzi-o do original francês. Na semana em que deixo a
ONU, após nove anos de serviços,
pensei que não haveria maneira
melhor de homenagear Sérgio e o
ideal da ONU, pelo qual deu sua
vida.
"Todos os artigos dos jornais e
todas as reportagens da televisão
fizeram, com inteira justiça, um
retrato sem falhas desse grande
aventureiro da paz e da liberdade
que foi Sérgio. Mas, para um amigo de infância como eu, Sérgio
pertencia a uma outra dimensão
-a essa dimensão na qual presença e ausência se confundem.
Com freqüência, Sérgio estava
longe, obedecendo ao apelo de um
ideal tão elevado, que seu afastamento se transformava numa forma intensa de proximidade. Hoje,
eu creio, todos partilhamos esse
sentimento de ausência e presença
confundidas.
É certamente em razão de nosso
laço de profunda amizade que
Annie, Laurent e André pediram-me que lhes dissesse algumas palavras.
Quando Sérgio nasceu, nossos
pais já se conheciam de longa data. Meu pai era seu padrinho, e
nossas famílias continuaram muito próximas, mas Sérgio e eu não
nos conhecemos de verdade, a não
ser a partir do momento em que
chegamos a Genebra, com algumas semanas de intervalo, em
1966. Tínhamos então a intenção
de prosseguir os estudos de filosofia iniciados no Brasil e desejávamos explorar as possibilidades que
se abriam a nós. Foi nosso querido
Castro que nos indicou o caminho
de Friburgo, onde ficamos um
ano, antes de partir para Paris.
Não vou, porém, contar-lhes a
história de nossa amizade. Prefiro
dizer-lhes que, desde aquele tempo, Sérgio, do alto de seus 18 anos,
era já o homem intelectualmente
corajoso e respeitoso que sempre
continuou a ser. Corajoso porque,
mesmo sentindo-se pequeno diante da amplidão da busca filosófica,
mesmo estudando noite e dia, devorando com afinco "A Crítica da
Razão Pura" ou "O Ser e o Tempo"
ou "A Ética a Nicômaco", Sérgio tinha a coragem de suas próprias
idéias, longamente meditadas e
amadurecidas. Respeitoso, porque
a coragem e a convicção de suas
próprias idéias não o impediam
de escutar e considerar as idéias
dos outros, de colocar à prova as
suas próprias, de dialogar com espírito aberto e sincero.
No verão de 1967, Sérgio e eu
viajamos de automóvel por vários
países do Leste Europeu. Hoje em
dia, esquecemos o que era então o
mundo atrás da Cortina de Ferro.
Era muito impressionante, e essa
viagem foi, para nós, uma experiência reveladora.
Durante essa viagem, fiquei impressionado pelo fato de que, onde
quer que andássemos, as pessoas
sempre tomavam Sérgio como um
cidadão daquele país. Um dia, em
Budapeste, fomos abordados por
algumas moças que, vendo nossa
reação de incompreensão ao que
elas diziam, pensavam que Sérgio
estava se dando ares de estrangeiro, embora devesse tratar-se de
um autêntico magiar! Em outra
ocasião, numa aldeia perdida da
Romênia, onde tínhamos feito
uma pausa, um senhor de certa
idade sentou-se à nossa mesa, recitando um poema em romeno. Em
seguida, ao perceber que éramos
estrangeiros, explicou-nos em perfeito francês que havia tomado
Sérgio por um romeno e, por causa
dos cabelos compridos, por um
poeta!
Em suma, em todos os lugares a
que íamos, as pessoas tomavam
Sérgio por uma delas. Pensando
nele, nestes últimos dias, perguntei-me qual seria o seu segredo.
Talvez a resposta seja dada por esses epistomologistas que julgam
que só conhecemos aquilo que reconhecemos. As pessoas viam em
Sérgio uma delas porque sabiam
imediatamente que o conheciam,
porque ele, Sérgio, as conhecia. É
bem isso, Sérgio conhecia as pessoas, ele logo sabia com quem estava lidando. É de lá que vinha
seu poder de sedução, e foi esse poder de sedução que ele utilizou para realizar sua grande aventura, a
de dizer às pessoas que, na vida,
existe mais que o ódio e o desespero, que nada vale a dignidade e a
liberdade.
Em 1969, Sérgio regressou a Genebra e iniciou sua carreira no Alto Comissariado da ONU para os
Refugiados. Muito cedo, Sérgio
compreendeu e assumiu a elevada
missão das Nações Unidas e, em
particular, seus objetivos humanitários e fundamentalmente humanistas. Muito cedo, Sérgio mostrou sua coragem, apaixonando-se pelas missões mais difíceis nas
regiões mais explosivas do planeta, obtendo resultados concretos e
usando, para isso, essa autoridade
que lhe era natural, pois imbuída
de um autêntico respeito pelo outro.
Mais tarde, durante os raros períodos em que seu dever o retinha
mais em Genebra, nós almoçávamos juntos de maneira regular.
Penso com saudades nesses momentos em que, longamente, trocávamos idéias sobre a vida e a
humanidade. Às vezes, essas
idéias nos faziam meditar profundamente, às vezes nos faziam rir
às gargalhadas. Sérgio era um alquimista fantástico, misturando
as coisas importantes, essenciais, a
um bom humor caçoador e divertido.
O que nos resta quando desaparecem nossos seres queridos? A
morte de Sérgio é injusta -a barbárie é ignóbil. Sérgio deu um
exemplo de coragem e de respeito
que não se apagará jamais! A
grande aventura que Sérgio viveu
nos fará sonhar durante muito
tempo!"
Com os meus agradecimentos a
Flávio da Silveira.
Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo
Itamar Franco).
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