São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Sérgio

RUBENS RICUPERO

Quando sérgio Vieira de Mello morreu, eu me encontrava em lugar remoto, a 120 km de Maceió e, a princípio, não acreditei. Só cheguei a Genebra após o enterro e a missa, em 28 de agosto de 2003, na igreja Saint Paul, em Grange Canal. Bem mais tarde, tomei conhecimento dos belos textos lidos na ocasião, o primeiro, contendo também palavras de Annie, sua mulher, escrito por nosso querido amigo José de Freitas Castro, o segundo, por Flávio da Silveira, seu amigo de infância.
Flávio vive e trabalha em Genebra há muitos anos. É homem de cultura, sensibilidade, discrição e inteligência penetrante. Seu pai, evocado no texto, padrinho de Sérgio, foi um dos maiores ministros das Relações Exteriores que teve o Brasil, o inesquecível embaixador Antonio Francisco Azeredo da Silveira.
Nenhum outro testemunho captou como o de Flávio o segredo do poder de sedução de Sérgio. Nenhum outro alçou-se a esse nível de emoção contida, recordação pungente, análise perceptiva e, acima de tudo, verdade profunda, que só pode nascer de uma amizade afetuosa. Achei que ele não podia ficar desconhecido do público brasileiro e, com a permissão de Flávio, traduzi-o do original francês. Na semana em que deixo a ONU, após nove anos de serviços, pensei que não haveria maneira melhor de homenagear Sérgio e o ideal da ONU, pelo qual deu sua vida.
"Todos os artigos dos jornais e todas as reportagens da televisão fizeram, com inteira justiça, um retrato sem falhas desse grande aventureiro da paz e da liberdade que foi Sérgio. Mas, para um amigo de infância como eu, Sérgio pertencia a uma outra dimensão -a essa dimensão na qual presença e ausência se confundem. Com freqüência, Sérgio estava longe, obedecendo ao apelo de um ideal tão elevado, que seu afastamento se transformava numa forma intensa de proximidade. Hoje, eu creio, todos partilhamos esse sentimento de ausência e presença confundidas.
É certamente em razão de nosso laço de profunda amizade que Annie, Laurent e André pediram-me que lhes dissesse algumas palavras.
Quando Sérgio nasceu, nossos pais já se conheciam de longa data. Meu pai era seu padrinho, e nossas famílias continuaram muito próximas, mas Sérgio e eu não nos conhecemos de verdade, a não ser a partir do momento em que chegamos a Genebra, com algumas semanas de intervalo, em 1966. Tínhamos então a intenção de prosseguir os estudos de filosofia iniciados no Brasil e desejávamos explorar as possibilidades que se abriam a nós. Foi nosso querido Castro que nos indicou o caminho de Friburgo, onde ficamos um ano, antes de partir para Paris.
Não vou, porém, contar-lhes a história de nossa amizade. Prefiro dizer-lhes que, desde aquele tempo, Sérgio, do alto de seus 18 anos, era já o homem intelectualmente corajoso e respeitoso que sempre continuou a ser. Corajoso porque, mesmo sentindo-se pequeno diante da amplidão da busca filosófica, mesmo estudando noite e dia, devorando com afinco "A Crítica da Razão Pura" ou "O Ser e o Tempo" ou "A Ética a Nicômaco", Sérgio tinha a coragem de suas próprias idéias, longamente meditadas e amadurecidas. Respeitoso, porque a coragem e a convicção de suas próprias idéias não o impediam de escutar e considerar as idéias dos outros, de colocar à prova as suas próprias, de dialogar com espírito aberto e sincero.
No verão de 1967, Sérgio e eu viajamos de automóvel por vários países do Leste Europeu. Hoje em dia, esquecemos o que era então o mundo atrás da Cortina de Ferro. Era muito impressionante, e essa viagem foi, para nós, uma experiência reveladora.
Durante essa viagem, fiquei impressionado pelo fato de que, onde quer que andássemos, as pessoas sempre tomavam Sérgio como um cidadão daquele país. Um dia, em Budapeste, fomos abordados por algumas moças que, vendo nossa reação de incompreensão ao que elas diziam, pensavam que Sérgio estava se dando ares de estrangeiro, embora devesse tratar-se de um autêntico magiar! Em outra ocasião, numa aldeia perdida da Romênia, onde tínhamos feito uma pausa, um senhor de certa idade sentou-se à nossa mesa, recitando um poema em romeno. Em seguida, ao perceber que éramos estrangeiros, explicou-nos em perfeito francês que havia tomado Sérgio por um romeno e, por causa dos cabelos compridos, por um poeta!
Em suma, em todos os lugares a que íamos, as pessoas tomavam Sérgio por uma delas. Pensando nele, nestes últimos dias, perguntei-me qual seria o seu segredo. Talvez a resposta seja dada por esses epistomologistas que julgam que só conhecemos aquilo que reconhecemos. As pessoas viam em Sérgio uma delas porque sabiam imediatamente que o conheciam, porque ele, Sérgio, as conhecia. É bem isso, Sérgio conhecia as pessoas, ele logo sabia com quem estava lidando. É de lá que vinha seu poder de sedução, e foi esse poder de sedução que ele utilizou para realizar sua grande aventura, a de dizer às pessoas que, na vida, existe mais que o ódio e o desespero, que nada vale a dignidade e a liberdade.
Em 1969, Sérgio regressou a Genebra e iniciou sua carreira no Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. Muito cedo, Sérgio compreendeu e assumiu a elevada missão das Nações Unidas e, em particular, seus objetivos humanitários e fundamentalmente humanistas. Muito cedo, Sérgio mostrou sua coragem, apaixonando-se pelas missões mais difíceis nas regiões mais explosivas do planeta, obtendo resultados concretos e usando, para isso, essa autoridade que lhe era natural, pois imbuída de um autêntico respeito pelo outro.
Mais tarde, durante os raros períodos em que seu dever o retinha mais em Genebra, nós almoçávamos juntos de maneira regular. Penso com saudades nesses momentos em que, longamente, trocávamos idéias sobre a vida e a humanidade. Às vezes, essas idéias nos faziam meditar profundamente, às vezes nos faziam rir às gargalhadas. Sérgio era um alquimista fantástico, misturando as coisas importantes, essenciais, a um bom humor caçoador e divertido.
O que nos resta quando desaparecem nossos seres queridos? A morte de Sérgio é injusta -a barbárie é ignóbil. Sérgio deu um exemplo de coragem e de respeito que não se apagará jamais! A grande aventura que Sérgio viveu nos fará sonhar durante muito tempo!"
Com os meus agradecimentos a Flávio da Silveira.


Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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