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São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Lula e 2004

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

O presidente Lula fez ontem, diante de seus principais colaboradores, algumas afirmações perigosas sobre o que nos espera em 2004. Decretou o fim dos tempos difíceis, que segundo ele são devidos totalmente a uma pretensa herança maldita dos anos FHC. Tivesse nosso presidente conselheiros mais sábios e, talvez, a ênfase no fim dos anos difíceis e duros para o brasileiro comum seria mitigada.
Meu leitor já conhece as preocupações que trago comigo sobre o que está acontecendo no mundo global em que vivemos. Elas aumentam todos os dias na medida em que os mercados financeiros refletem, de maneira nervosa e tensa, a evolução dos principais indicadores econômicos. A queda constante do valor do dólar, moeda sobre a qual está erguida toda a estrutura econômica e financeira atual, começa a assustar de verdade.
Os otimistas, que ainda são a maioria, enxergam nesse processo a solução natural dos desequilíbrios atuais da maior economia do planeta. Fazem uma leitura tradicional dos livros textos de economia sem considerar os pecados capitais contra a ortodoxia, que são cometidos todos os dias por autoridades econômicas e monetárias em vários países importantes. Raciocinam em razão de um mundo que não existe mais e perdem com isso sua capacidade de entender o fenômeno econômico real.
Na China, no Japão e na maioria dos países da Ásia, os bancos centrais compram quantidades crescentes de dólares, que estão nas mãos dos exportadores, para evitar uma valorização de suas moedas nacionais. Nesse processo de defesa do crescimento de suas economias, acabam criando pelo menos duas distorções fantásticas: um aumento brutal da liquidez interna e um dique temporário contra o aumento da inflação.
Esses dólares, que acabam no caixa dos bancos centrais, são então reciclados para os Estados Unidos sob a forma de compras maciças de títulos do Tesouro. Com isso, viabilizam a manutenção dos déficits gêmeos do governo Bush: o fiscal e o da balança de pagamentos. Essa ciranda financeira evita que os juros de prazo mais longo nos Estados Unidos respondam ao aquecimento da economia e viabilizam por mais tempo a política monetária frouxa do Federal Reserve. Nesse cenário, a retomada da atividade econômica se acelera, provocando a manutenção do déficit comercial e da conta corrente externa, e o ciclo do diabo é reiniciado.
No mundo financeiro, lugar em que o número de operadores espertos e pragmáticos supera os teóricos do equilíbrio clássico, esse processo circular é conhecido muito bem, Ele já ocorreu várias vezes nas últimas décadas e sempre terminou mal. Todos sabem que esse autofinanciamento dos déficits americanos pelos países da Ásia vai acabar um dia e os desequilíbrios atuais vão provocar uma correção dramática de moedas e juros e o aparecimento da inflação.
Os mais afobados, ou talvez os mais corretos, já estão trocando seus dólares por outras moedas ou bens físicos como ouro e outros metais. Sabem esses senhores que o volume de dólares em circulação, mesmo com o entesouramento feito pelos bancos centrais asiáticos, é muito superior ao compatível com uma economia mundial equilibrada. Portanto seu valor atual está errado e a possibilidade de sofrer uma correção brusca aumenta a cada dia que passa.
Nessa procura por águas mais calmas cria-se uma corrida, ainda organizada, para outras moedas como o euro, o dólar canadense e o australiano e, por incrível que pareça o peso chileno e o real brasileiro. O ouro ressurgiu das cinzas como ativo de valor em tempos bicudos. Os mais ousados ou seguros de suas convicções trocam dólares por moedas asiáticas controladas por seus bancos centrais na segurança de que, em futuro próximo, elas vão voltar a flutuar e proporcionar ganhos extraordinários.
Neste mundo em desalinho, os riscos em 2004 são muito grandes. Embora o Brasil seja um dos ganhadores nesse processo, os riscos que corremos quando a bolha estourar são imensos. Na última vez em que uma correção mais brusca ocorreu, em 1994, o México quebrou. O Brasil foi atingido de maneira suave em razão do sucesso do Plano Real. Agora a situação é diferente, pois a crise, quando vier, será mais grave pela dimensão e extensão dos desequilíbrios atuais. Por isso penso que o otimismo do presidente e de seus assessores pode ser muito perigoso!


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 61, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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