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São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Transportes: devagar quase parando

JOSEF BARAT

Os graves problemas que atingem os transportes têm origem em passado remoto. Os gargalos acumularam-se, sem dúvida, por imprevidência de inúmeros governos e, por duas décadas, vêm estrangulando a oferta. No que diz respeito à era FHC, porém, pode-se destacar alguns aspectos que agravaram os problemas do passado. Do ponto de vista institucional, foram desmontados por completo os núcleos de inteligência da administração pública federal ligada aos transportes. Sob o pretexto da "privatização" como solução para todos os males, retardou-se a reestruturação do Ministério dos Transportes e das organizações públicas a ele vinculadas, para as funções não delegáveis pelo Estado. As concessões foram feitas, inclusive, sem que se criasse uma agência reguladora (como ocorreu nos setores de energia, petróleo e telecomunicações). Só recentemente foram criadas duas agências (uma terrestre e outra hidroviária) na contramão dos modernos conceitos de coordenação, integração e multimodalidade. E uma reforma pífia não deu à estrutura executiva do ministério uma instância moderna de planejamento estratégico, formulação de políticas públicas e coordenação.
Do ponto de vista operacional, agravou-se de forma alarmante o processo de degradação física da malha rodoviária sob responsabilidade federal. Segundo pesquisa da CNT (Confederação Nacional dos Transportes), em cerca de 45 mil km de rodovias avaliados, quase 70% encontram-se em estado classificado como deficiente, ruim ou péssimo. Já para o Ministério dos Transportes, na avaliação de 47 mil km, 60% têm sua condição classificada como regular, má ou péssima. Divergências à parte, é óbvio que essa absurda degradação do patrimônio rodoviário do país traduz-se em elevação dos custos de operação e manutenção da frota de caminhões e veículos comerciais de carga. Aumenta, também, o número de acidentes e vítimas, onerando a sociedade com despesas de internações hospitalares e tratamentos de reabilitação, além do inaceitável custo das mortes e deficiências físicas permanentes.
As concessões -apontadas como solução para a falta de recursos públicos destinados à restauração das rodovias- mostraram-se de alcance muito limitado. Dos cerca de 54 mil km de rodovias federais pavimentadas, pouco mais de 4.600 -ou seja, 8,5% dessa extensão- foram concedidos, aí incluídos os cerca de 3.000 km de rodovias delegadas pela União aos Estados. Em princípio, o interesse demonstrado pelo setor privado atinge, numa visão muito otimista, mais 8.000 km. Somados à extensão já concedida, as concessões rodoviárias federais poderão perfazer, no máximo, cerca de 23% da malha viária pavimentada. Mas considerando que, excluído o minério de ferro, os caminhões são responsáveis por mais de 70%, é óbvio que o estado lastimável das rodovias afeta o abastecimento interno e a competitividade das exportações. Com isso, eleva-se muito o "custo Brasil", num momento em que temos que baratear o custo dos alimentos e ampliar as exportações.
Já no caso das ferrovias, com a "privatização" de toda a malha ferroviária, a solução está virando um problema. No processo de concessões, assumiram o controle das ferrovias os grandes conglomerados que tinham, nesse modal, o meio de transporte dos seus insumos e produtos. O transporte ferroviário sempre se concentrou em um número reduzido de cargas, tais como minério de ferro, produtos siderúrgicos, cimento, carvão e grãos. Os concessionários, que eram os grandes clientes, transformaram as ferrovias em centros de custos dos seus negócios, deixando de lado a visão do transporte multimodal e da captação de cargas apropriadas ao transporte ferroviário e sua integração com o rodoviário. Para completar, os concessionários não vêm cumprindo as metas de investimentos de seus contratos.
Nos portos, a situação continua grave. A Lei dos Portos trouxe alguns benefícios, mas criou um emaranhado de instâncias decisórias que deixaria Kafka perplexo. Com exceção dos terminais privativos, a situação dos portos é ainda dramática. Acessos deficientes para caminhões e trens, operações com baixa produtividade e custos operacionais ainda muito elevados, quando comparados aos dos portos americanos e europeus. Além disso, a "privatização" nos portos obedeceu a uma lógica que vai na direção contrária do que ocorre em países mais desenvolvidos. Prevalece a concessão fragmentada de áreas e serviços específicos, em detrimento da gestão do todo como negócio e que visa a competir com outros portos na busca de cargas na sua região de influência. O porto moderno é, sobretudo, um promotor das exportações e um indutor do desenvolvimento regional.
Nos transportes metropolitanos, a situação é inquietante. Não é concebível que se continue a perpetuar a omissão do governo federal não somente na formulação de políticas públicas como também no aporte de recursos. É uma grande hipocrisia colocar nas mãos das autoridades locais a responsabilidade pela modernização e pela ampliação dos sistemas de trens e metrôs nas regiões metropolitanas. São problemas de grande complexidade, que envolvem uma política industrial relacionada com cadeias produtivas complexas para o material rodante e equipamentos, além de interfaces com políticas energéticas e ambientais, de âmbito federal. Apenas como exemplo, no caos gerado pela crise energética, o suprimento de eletricidade para trens e metrôs não mereceu tratamento condizente com a sua importância social. Do ponto de vista institucional e de mecanismos de financiamento regredimos para era anterior aos anos 70.
Infra-estruturas de transporte demandam estratégias, políticas, planos e recursos que obrigam a administração pública trabalhar com uma visão de longo prazo. Claro que para a alocação de recursos escassos as concessões são bem-vindas, mas devem ser vistas como instrumentos de políticas públicas mais amplas, e não como um fim em si mesmas. Grande parte das infra-estruturas continuará a depender, para a sua preservação e ampliação, de recursos públicos a fundo perdido. O importante, portanto, é que o novo governo comece a pensar seriamente em reestruturar as bases institucionais e organizacionais, além de criar mecanismos de financiamento estáveis no longo prazo. Titubeios iniciais são naturais em inícios de governo. Mas é preciso ver as coisas com clareza: "tapa buracos" em estradas é tão somente uma ação emergencial, não política de transportes e, muito menos, política social.
Hoje o objetivo social maior é o da chamada segurança alimentar e o econômico o de aumentar a competitividade das exportações. Portanto o papel dos transportes é baixar custos e viabilizar logísticas mais condizentes com esses objetivos. Se quisermos pensar seriamente em crescimento e termos alguma perspectiva de futuro, não poderemos deixar de fortalecer as nossas infra-estruturas de transporte. Sendo indutoras do desenvolvimento e da organização territorial, torna-se premente a necessidade de planos e programas governamentais abrangentes, integrados e de natureza estratégica, para atender o presente e balizar as expansões futuras. Infelizmente, tomando de empréstimo frase do sábio barão de Itararé, "tudo seria fácil se não fossem as dificuldades".


Josef Barat, 63, economista, é membro do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Foi secretário de Transportes do Estado do Rio (governo Faria Lima e Moreira Franco) e presidente da Empresa Metropolitana de Transportes do Estado de São Paulo (1979-80).
E-mail: barat@hipernet.com.br


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