São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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COMENTÁRIO

Antes de ser "falcão", ele falava como Lula

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Antes de se transformar em um dos maiores "falcões" da Guerra do Iraque, Paul Wolfowitz, o secretário-adjunto da Defesa dos EUA que acaba de ser apontado para a presidência do Bird (Banco Mundial), pensava sobre pobreza o mesmo que pensa e diz hoje o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
Conforme lembra o editorial publicado sexta-feira pelo "New York Times", Wolfowitz era, em seus tempos de Departamento de Estado e embaixador na Indonésia, "um persuasivo comunicador que chegou a escrever que segurança e pobreza estão conectadas e que as soluções para os conflitos globais não estão necessariamente nas armas, mas na redução da pobreza e no desenvolvimento econômico".
É exatamente a tese que Lula repete, uma e outra vez, nos foros internacionais a que é chamado: a guerra que quer travar é contra a fome e a pobreza, com o que o mundo se tornará mais seguro.
A questão a decifrar agora é simples: o Wolfowitz indicado para o Banco Mundial- cujo slogan é precisamente "um mundo livre da pobreza"- é o "comunicador" incomodado com a pobreza ou o "falcão" que preferiu as armas no Iraque, ainda por cima atuando unilateralmente?
Como é óbvio, o indicado prefere autodefinir-se pela primeira hipótese. Na sua primeira entrevista após a indicação, nos escritórios que ocupa no Pentágono, disse:
1) "Meu trabalho é tentar formar o mais forte consenso possível para fazer as coisas andarem". Ou seja, unilateralismo nunca mais, pelo menos na retórica.
2) "Antes de mais nada, preciso preservar o compromisso [do Banco Mundial] com a redução da pobreza, que é um dos grandes desafios morais de nosso tempo."
Juramentos desse tipo não comoveram, como era aliás previsível, os críticos do próprio Wolfowitz e da Guerra do Iraque, que se confundem.
O jornal britânico "The Independent", que é talvez a mais nítida voz dos grupos de centro-esquerda, disparou: "Designação aterrorizante" e "um insulto aos pobres". O jornal aponta Wolfowitz como responsável por "alguns dos erros de julgamento mais cruelmente chocantes".
Não deixa de ter certa razão: o então subsecretário de Defesa foi o responsável pela decisão de banir dos contratos para a reconstrução do Iraque empresas dos países que não apoiaram a guerra.
Nada mais contrário ao espírito de "forte consenso" que o futuro presidente do Bird diz agora defender. Ainda mais considerando que o negócio do banco é precisamente a cooperação para o desenvolvimento (ou para a reconstrução, no caso iraquiano ou afegão ou, na América Latina, do Haiti).
A pergunta seguinte inevitável é esta: na presidência do Banco Mundial, Wolfowitz também selecionará os países que devem receber recursos com base na maior ou menor adesão à política externa norte-americana? Ou usará o banco como alavanca da chamada política de expansão da democracia, a menina-dos-olhos do governo que ainda integra?
Se o fizer, é muito provável que o banco perca sentido, na medida em que a maioria dos países que utilizam esses recursos não são democráticos.
Wolfowitz, como é natural, diz que não será instrumento da política de Washington: "Não serei o diretor-executivo norte-americano no banco, mas seu presidente", disse na primeira entrevista.
Outra questão vital sobre o seu comportamento é essencialmente ideológica. Os neocons (os neoconservadores norte-americanos) têm a tese, que não é de todo incorreta, de que não adianta pôr dinheiro em certos países pobres, porque os recursos acabam em contas secretas dos governantes.
Não se trata de uma opinião dita em voz baixa. Quando era secretário do Tesouro, Paul O'Neill disse a frase em público, além de ter causado constrangimento ao governo da época (Fernando Henrique Cardoso), ao afirmar que a principal causa dos juros altos no Brasil era a corrupção.
Para o Brasil, outro problema relacionado à indicação de Wolfowitz está dado pela discussão em surdina sobre quem deve receber os recursos do Banco Mundial: os países realmente pobres ou também nações de renda média, como é o caso do Brasil?
Wolfowitz não entrou na discussão, mas, se se inclinar pelo atendimento exclusivamente aos muito pobres, o Brasil perderá uma fonte valiosa -e relativamente barata- de financiamento externo: em 2003, juntos, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento desembolsaram US$ 2,38 bilhões em novos financiamentos (muito provavelmente, o BID será influenciado por uma guinada no Banco Mundial).


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