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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Cosmopolitas
ou capitães do mato?
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Pois é, minha gente, os
sem-terra estão aí, pedindo
passagem para ingressar no
século 20. É isso mesmo. O
Brasil é tão aferrado às suas
tradições patrimonialistas
que tem o privilégio de exibir
para o mundo um conflito
agrário de grandes proporções no limiar do século 21.
Há quem ouça com horror
essas afirmações e reparta a
sua angústia entre arrumar
as malas e prever o caos. São
os que sonham com a democracia dos patrícios. Nada
mais natural em um país em
que os liberais de um século
atrás liam à noite Stuart Mill
e, pela manhã, acordavam os
escravos sonolentos derramando-lhes às costas o óleo
do candeeiro que servira de
lume.
Desgraçadamente para os
partidários da democracia
restrita ou gradual e segura,
a experiência do século 20 demonstra que a aceitação plena das regras de uma sociedade "avançada" supõe a
presença das massas como
protagonistas ativos das
transformações e do progresso. O resto é tentativa inútil
de quadrar o círculo ou esquadrinhar ovo para encontrar pelugem.
O regime militar bem que
tentou a "modernização pelo alto" e deu no que deu.
Não é sem razão que os patrícios se reuniram no Copacabana Palace para agradecer
as proezas do autoritarismo,
encarnadas na figura ilustre
do dr. Roberto Campos, cuja
herança vaga pelo Brasil em
busca de terra, comida e trabalho.
A modernização pelo alto e
a famigerada "teoria do bolo" ampliaram e reproduziram o apartheid social, originário do escravismo. Assim, o
natural conflito de classes do
capitalismo industrial e moderno se desenvolve num espaço de profundas desigualdades nascidas no capitalismo escravista. Essa peculiaridade da formação econômica
e social brasileira torna extremamente difícil a execução de políticas reformistas
graduais. A "acumulação
histórica" de problemas
transforma as situações de
conflito em arsenais de explosivos, prestes a ir para os
ares.
A integração das massas
nos padrões de consumo, cultura e convivência oferecidos
pelo capitalismo contemporâneo exige reformas mais
profundas nas relações de
propriedade e de trabalho, e
modalidades muito avançadas de cidadania, que incluem o direito à remuneração sem qualquer vinculação
ao emprego.
Na Europa, hoje, diante das
transformações tecnológicas
e da organização empresarial
que afetam a estrutura e a
qualidade do emprego, a discussão se trava em torno do
direito ao "rendimento universal".
Aqui a melhoria do padrão
de vida dos deserdados e desdentados entra em choque
com os preconceitos e o reacionarismo das classes educadas e cosmopolitas.
Agora, outra vez, a vulgata
do pensamento dominante
proclama a queda das fronteiras, a internacionalização
dos mercados, os formidáveis
movimentos de capitais. Essas admirações são o adorno
da alma nativa. Vem de longa data a atitude basbaque
das camadas dominantes, da
classe média para cima, com
o que vem de fora para dentro.
Os endinheirados, os letrados e os bem-postos na vida
cultivam o cosmopolitismo
"avant la lèttre", o que expressa uma secular e singular
repugnância pelas condições
reais do país, pela vida miserável das classes subalternas.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 55, economista,
é professor titular de Economia da Unicamp.
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