São Paulo, segunda-feira, 20 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

O neo-ufanismo agrícola

JOSÉ MARIA ALVES DA SILVA

Mudam-se os tempos e os argumentos, mas o ufanismo quanto às potencialidades agropecuárias do Brasil continua o mesmo. A diferença, na era pós-Collor, é a presença da retórica neoliberal, que alimenta a crença de que a melhor providência para o aproveitamento dessas potencialidades é deixar a "mão invisível" do mercado operar livremente.
Sem dúvida, esse neo-ufanismo foi insuflado pelo desempenho produtivo do setor agropecuário ao longo da última década. Não obstante, entre esse desempenho e o desempenho econômico, do ponto de vista da sociedade, há uma distância muito grande. Considere-se, por exemplo, a cadeia do leite que, embora tenha registrado um dos maiores crescimentos da produtividade, foi motivo de uma CPI na Assembléia Legislativa de Minas Gerais. O relatório da comissão mostrou que os produtores estão à míngua, o sistema cooperativista desarticulou-se, a pequena e média indústria laticinista nacional foi engolida ou expulsa pelo capital estrangeiro e a relação custo-benefício para os consumidores não parece tão favorável como previam os apologistas da modernização tecnológica.
Os relatórios neo-ufanistas alardeiam os recordes de "tonelagens" de grãos, a tendência de queda dos preços reais dos alimentos e os números do superávit comercial externo do agrobusiness. Assim como a triste sina Argentina, qualquer referência a recordes de "tonelagens" de grãos na América Latina pode fazer penar a alma de Prebisch. Estará o Brasil se tornando uma grande plantation? Será esse o seu destino no mundo globalizado? Além disso, estarão sendo essas marcas alcançadas em condições razoáveis de sustentabilidade ambiental? Fala-se muito das potencialidades agronômicas do cerrado, mas muito pouco sobre os impactos ambientais da produção agrícola nessas áreas, especialmente no que concerne aos recursos hídricos, cujo esgotamento é cada vez mais visível.
Os preços reais, especialmente os recebidos pelos produtores, estão, de fato, em tendência de queda há muito tempo e de forma mais acentuada na última década. Mas será que isso está contribuindo para melhorar a situação do povo brasileiro? A queda dos preços dos alimentos só será socialmente auspiciosa se contribuir para a elevação da massa salarial, em termos reais, sem comprometimento das condições ambientais. Quem pode afirmar que isso está ocorrendo? A capacidade de comprar alimentos, no agregado, poderá mesmo diminuir se, a despeito da queda dos preços, a participação dos trabalhadores na renda cair devido, principalmente, à piora das condições de emprego. Para as classes de renda média e alta, alimentos mais baratos favorecem o consumo de bens e serviços "pós-modernos", cuja produção, como se sabe, não é intensiva em mão-de-obra nacional. Enfim, as implicações econômicas e sociais da queda dos preços dos alimentos são muito complexas e sutis, como David Ricardo já bem havia indicado. Antes de uma detalhada análise dessas implicações, que leve adequadamente em conta os aspectos social e ambiental, não se pode tomar como benfazeja qualquer tendência declinante de preços agropecuários. O que era bom para a Inglaterra de David Ricardo não necessariamente o será para o Brasil "englobalizado".
Enfatiza-se o superávit do agrobusiness, mas e quanto ao balanço de transações correntes do complexo agroindustrial integrado com o resto do mundo? Levando-se em conta as importações de todos os insumos necessários à produção doméstica, os pagamentos de direitos sobre a propriedade de tecnologia, remessas de lucros sobre o capital estrangeiro aplicado nas cadeias nacionais etc., de quanto seria o superávit? O Chile, por exemplo, que é um país pequeno, exporta mais de US$ 2 bilhões em frutas e vegetais frescos. Mas, do valor total da produção ali realizada, quanto é apropriado pelo país, haja vista o fato de que as cadeias internacionais de frutas e vegetais frescos são controladas por grandes tradings norte-americanas e européias? Os tentáculos dessas tradings estão cada vez mais visíveis nos agropolos de fruticultura do Brasil. Há alguma semelhança com as "repúblicas das bananas"? E quanto à perda de autonomia estratégica? Sabe-se que estamos batendo recordes de produção de grãos, mas não que perdemos o controle da produção dos insumos mais indispensáveis, como a semente.
Considerações científicas sobre essas e outras indagações, embora existam em bom número nas universidades, fazem pouco eco na sociedade. O ufanismo repercute mais, como bem mostra o artigo "A nova agenda da agricultura", de Gesner Oliveira, publicado na Folha (Dinheiro, 16/3/2002). O articulista prevê a necessidade de certo ativismo estatal "para assegurar a vantagem competitiva da agricultura brasileira". Reconhece, pois, que só a "mão invisível" não basta. Mas suas recomendações restringem-se às ações de política externa contra o protecionismo dos norte-americanos e europeus, ao provimento de infra-estrutura estratégica para exportação, à fiscalização e ao marketing no agrobusiness (promoção da marca Brasil) e ao apoio à pesquisa. Nada que pareça implicar grandes esforços e mobilizações, coordenados e integrados num plano nacional estratégico multidimensional.
Na recomendação de apoio à pesquisa, o autor parece também subestimar a complexidade das ações coordenadas e os vários envolvimentos institucionais que deveriam estar previstos no detalhamento de um tal plano. Ao menos é isso que dá a entender sua afirmativa de que "a ação da Embrapa em parceria com o setor privado foi decisiva na adaptação da soja ao cerrado". A bem da justiça, não foi só a parceria da Embrapa com o setor privado que viabilizou a soja no cerrado. Universidades públicas, como a Federal de Viçosa e a USP/Esalq, também tiveram participações decisivas -diretamente, na geração de pesquisas, e indiretamente, na formação dos quadros da própria Embrapa.


José Maria Alves da Silva é doutor em economia e professor da Universidade Federal de Viçosa.

Texto Anterior: País deve priorizar OMC e Mercosul, aponta pesquisa
Próximo Texto: Dicas Folhainvest - Ações: Com matriz em crise, Embratel ON passa a ser opção, mas de risco
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.