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OPINIÃO ECONÔMICA
O neo-ufanismo agrícola
JOSÉ MARIA ALVES DA SILVA
Mudam-se os tempos e os
argumentos, mas o ufanismo quanto às potencialidades
agropecuárias do Brasil continua
o mesmo. A diferença, na era pós-Collor, é a presença da retórica
neoliberal, que alimenta a crença
de que a melhor providência para
o aproveitamento dessas potencialidades é deixar a "mão invisível" do mercado operar livremente.
Sem dúvida, esse neo-ufanismo
foi insuflado pelo desempenho
produtivo do setor agropecuário
ao longo da última década. Não
obstante, entre esse desempenho
e o desempenho econômico, do
ponto de vista da sociedade, há
uma distância muito grande.
Considere-se, por exemplo, a cadeia do leite que, embora tenha
registrado um dos maiores crescimentos da produtividade, foi motivo de uma CPI na Assembléia
Legislativa de Minas Gerais. O relatório da comissão mostrou que
os produtores estão à míngua, o
sistema cooperativista desarticulou-se, a pequena e média indústria laticinista nacional foi engolida ou expulsa pelo capital estrangeiro e a relação custo-benefício
para os consumidores não parece
tão favorável como previam os
apologistas da modernização tecnológica.
Os relatórios neo-ufanistas alardeiam os recordes de "tonelagens" de grãos, a tendência de
queda dos preços reais dos alimentos e os números do superávit comercial externo do agrobusiness. Assim como a triste sina
Argentina, qualquer referência a
recordes de "tonelagens" de grãos
na América Latina pode fazer penar a alma de Prebisch. Estará o
Brasil se tornando uma grande
plantation? Será esse o seu destino
no mundo globalizado? Além disso, estarão sendo essas marcas alcançadas em condições razoáveis
de sustentabilidade ambiental?
Fala-se muito das potencialidades
agronômicas do cerrado, mas
muito pouco sobre os impactos
ambientais da produção agrícola
nessas áreas, especialmente no
que concerne aos recursos hídricos, cujo esgotamento é cada vez
mais visível.
Os preços reais, especialmente
os recebidos pelos produtores, estão, de fato, em tendência de queda há muito tempo e de forma
mais acentuada na última década.
Mas será que isso está contribuindo para melhorar a situação do
povo brasileiro? A queda dos preços dos alimentos só será socialmente auspiciosa se contribuir
para a elevação da massa salarial,
em termos reais, sem comprometimento das condições ambientais. Quem pode afirmar que isso
está ocorrendo? A capacidade de
comprar alimentos, no agregado,
poderá mesmo diminuir se, a despeito da queda dos preços, a participação dos trabalhadores na renda cair devido, principalmente, à
piora das condições de emprego.
Para as classes de renda média e
alta, alimentos mais baratos favorecem o consumo de bens e serviços "pós-modernos", cuja produção, como se sabe, não é intensiva
em mão-de-obra nacional. Enfim,
as implicações econômicas e sociais da queda dos preços dos alimentos são muito complexas e
sutis, como David Ricardo já bem
havia indicado. Antes de uma detalhada análise dessas implicações, que leve adequadamente em
conta os aspectos social e ambiental, não se pode tomar como benfazeja qualquer tendência declinante de preços agropecuários. O
que era bom para a Inglaterra de
David Ricardo não necessariamente o será para o Brasil "englobalizado".
Enfatiza-se o superávit do agrobusiness, mas e quanto ao balanço de transações correntes do
complexo agroindustrial integrado com o resto do mundo? Levando-se em conta as importações de
todos os insumos necessários à
produção doméstica, os pagamentos de direitos sobre a propriedade de tecnologia, remessas
de lucros sobre o capital estrangeiro aplicado nas cadeias nacionais etc., de quanto seria o superávit? O Chile, por exemplo, que é
um país pequeno, exporta mais
de US$ 2 bilhões em frutas e vegetais frescos. Mas, do valor total da
produção ali realizada, quanto é
apropriado pelo país, haja vista o
fato de que as cadeias internacionais de frutas e vegetais frescos
são controladas por grandes tradings norte-americanas e européias? Os tentáculos dessas tradings estão cada vez mais visíveis
nos agropolos de fruticultura do
Brasil. Há alguma semelhança
com as "repúblicas das bananas"?
E quanto à perda de autonomia
estratégica? Sabe-se que estamos
batendo recordes de produção de
grãos, mas não que perdemos o
controle da produção dos insumos mais indispensáveis, como a
semente.
Considerações científicas sobre
essas e outras indagações, embora
existam em bom número nas universidades, fazem pouco eco na
sociedade. O ufanismo repercute
mais, como bem mostra o artigo
"A nova agenda da agricultura",
de Gesner Oliveira, publicado na
Folha (Dinheiro, 16/3/2002). O
articulista prevê a necessidade de
certo ativismo estatal "para assegurar a vantagem competitiva da
agricultura brasileira". Reconhece, pois, que só a "mão invisível"
não basta. Mas suas recomendações restringem-se às ações de política externa contra o protecionismo dos norte-americanos e
europeus, ao provimento de infra-estrutura estratégica para exportação, à fiscalização e ao marketing no agrobusiness (promoção da marca Brasil) e ao apoio à
pesquisa. Nada que pareça implicar grandes esforços e mobilizações, coordenados e integrados
num plano nacional estratégico
multidimensional.
Na recomendação de apoio à
pesquisa, o autor parece também
subestimar a complexidade das
ações coordenadas e os vários envolvimentos institucionais que
deveriam estar previstos no detalhamento de um tal plano. Ao menos é isso que dá a entender sua
afirmativa de que "a ação da Embrapa em parceria com o setor
privado foi decisiva na adaptação
da soja ao cerrado". A bem da justiça, não foi só a parceria da Embrapa com o setor privado que
viabilizou a soja no cerrado. Universidades públicas, como a Federal de Viçosa e a USP/Esalq, também tiveram participações decisivas -diretamente, na geração de
pesquisas, e indiretamente, na
formação dos quadros da própria
Embrapa.
José Maria Alves da Silva é doutor em
economia e professor da Universidade
Federal de Viçosa.
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