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São Paulo, terça-feira, 20 de maio de 2003

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ARTIGO

A queda do dólar prejudicará a Europa

MOISÉS NAÍM
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

Por mais de um ano, a deterioração nas relações políticas entre os Estados Unidos e a Europa ofereceu rico material para análises, previsões sombrias, ameaças e apelos. Nesse meio tempo, enquanto políticos, diplomatas e generais se preocupam com causas e consequências geopolíticas do declínio na saúde da relação transatlântica, o dólar não pára de cair ante o euro.
O dólar está muito perto de sua marca mais baixa em quatro anos diante do euro, e a maioria dos especialistas acha que a moeda ainda vai demorar a reconquistar seu vigor. Isso aponta para uma verdade que tem ainda de ser plenamente reconhecida dos dois lados do Atlântico: a queda no valor relativo do dólar diante do euro, que há poucas semanas chegava a 40% em relação a 2000 e desde então se acelerou muito, terá conseqüências mais sérias para a relação transatlântica do que todas as manobras diplomáticas, os discursos e os artigos sobre o tema.
A primeira e mais óbvia delas é que a Europa se verá inundada por exportações americanas, enquanto os EUA passarão por uma alta no número de turistas europeus cujas apreensões sobre as ações unilaterais de George W. Bush serão moderadas por oportunidades baratas de levar seus filhos à Disney.
Os americanos não vão adotar o vinho californiano de preferência ao francês devido ao voto da França no Conselho de Segurança da ONU, mas simplesmente porque o vinho francês se tornará mais caro.
A queda do dólar tornará a vida mais difícil para as indústrias européias, e aumentará a competitividade das americanas. O setor privado dos EUA já enxugou suas operações por meio de uma impiedosa reestruturação em resposta ao estouro da bolha nos mercados de ações, à lentidão da economia, aos escândalos empresariais e ao choque do terrorismo e da guerra. A rigidez nos mercados de trabalho europeus, a regulamentação que as empresas do continente sofrem e as estruturas fechadas de controle das companhias reduzem a capacidade de muitos desses grupos para reagir com rapidez às mudanças.
Um dólar mais barato será um grande desafio para os líderes empresariais europeus, para as autoridades econômicas e para os líderes sindicais. Os administradores na zona do euro enfrentarão pressão sem precedentes pelo corte de custos, os governos serão pressionados a criar e preservar empregos e os sindicalistas terão de tentar proteger os generosos benefícios. Um euro forte poderia estimular a criação das coalizões necessárias a empreender as reformas estruturais.
Mas a agenda de reforma é tão complexa e implica reordenação política e social tão dolorosa que os governos europeus podem se sentir tentados a recuar, em lugar disso, para a proteção de subsídios e barreiras protecionistas. Na ausência de reformas, algumas empresas podem optar por transferir suas linhas de produção a locais mais baratos e favoráveis, mas a maior parte delas não terá opção a não ser pressionar os governos por mais subsídios e mais proteção. À medida que aumentar o desemprego, as demandas políticas pela salvação dos empregos domésticos perdidos devido à importação, e para estancar o fluxo de imigrantes.
Um dólar mais baixo pode também atenuar as perspectivas de liberalização comercial. A rodada Doha da OMC já enfrentava uma batalha árdua; negociar abertura comercial em meio a um desemprego em alta e a um surto de importações pode também solapar o recente e significativo progresso que os ministros europeus da Agricultura realizaram em suas negociações para reformar os subsídios agrícolas europeus. Se a Europa tentar lidar com a força do euro por meio de medidas protecionistas, gerará disputas comerciais ainda mais freqüentes.
Tudo isso sugere um paradoxo: que uma moeda fraca nem sempre é sinal de fraqueza. Os EUA parecem bem equipados para minimizar as conseqüências negativas de uma desvalorização acentuada de sua moeda, sem deixar de tirar imensas vantagens das oportunidades que isso cria. Um grande fator para isso é a flexibilidade e a capacidade de adaptação da economia americana, particularmente a de um setor privado menos agrilhoado por regulamentação do que a sua contraparte européia.
Por fim, o realinhamento das taxas de câmbio mudará a maneira pela qual pensamos sobre assuntos internacionais. Durante os anos 90, as finanças se tornaram fator tão dominante na política mundial que alguns especialistas chegavam a argumentar que as questões tradicionais de segurança se haviam tornado menos relevantes. O 11 de setembro de 2001 mostrou o quanto essa idéia era absurda, e generais, especialistas militares e uma política externa musculosa voltaram à moda. Em breve, o foco das atenções voltará a se alterar. A queda no dólar ajudará a reequilibrar não só o déficit comercial dos Estados Unidos mas também a maneira pela qual pensamos sobre o mundo.


Moisés Naím é editor da revista "Foreign Policy". Foi ministro da Indústria e Comércio da Venezuela.

Tradução de Paulo Migliacci


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