São Paulo, sábado, 20 de maio de 2006

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ARTIGO

EUA evitam novo choque do petróleo

MARTIN WOLF

Quem tem medo de um choque do petróleo? Quase ninguém, parece ser a resposta. Existem diversas razões para esse estado de bem-aventurança. Mas entre as mais significativas está o fato de que são os Estados Unidos, e não países em desenvolvimento relativamente frágeis, que vêm absorvendo os empréstimos desta vez. Isso tornou muito mais fácil para a economia mundial superar o choque atual, se comparado aos anteriores.
O choque em si é bastante grande, como demonstra o mais recente "Panorama Econômico Mundial" do FMI (Fundo Monetário Internacional). Entre 2002 e 2005, as exportações líquidas de petróleo dos países exportadores de combustíveis subiram em US$ 437 bilhões, a valores de 2005 para o dólar, ante US$ 436 bilhões entre 1973 e 1981. Mas a economia mundial cresceu, de lá para cá. A ampliação no valor líquido das exportações de petróleo desses países representava 1,9% do produto mundial bruto, entre 1973 e 1981, e 1,2% entre 2002 e 2005.
Essa não é a única diferença. Como aponta o "Panorama", "no passado as contas correntes tendiam a se ajustar de maneira relativamente rápida aos choques de petróleo, já que preços mais altos para a energia geravam taxas de juros mais altas, desaceleração no crescimento e na demanda doméstica e mudanças nas taxas de câmbio e nos preços dos ativos. Dessa vez, em parte devido ao avanço das estruturas monetárias, o crescimento e a inflação foram menores do que no passado, enquanto a integração financeira mais profunda pode facilitar a persistência de déficits".
Qual deverá ser a persistência, portanto, do atual padrão de superávits e déficits em conta corrente? Isso suscita quatro questões adicionais. Por quanto tempo os preços do petróleo se manterão elevados? Quanto tempo demorará para que os exportadores gastem as receitas adicionais? Onde está ocorrendo a captação compensatória? Por quanto tempo essa captação será sustentada?
As altas de preços dos anos 70 não persistiram. Mas foi preciso mais que uma década, depois do primeiro choque do petróleo, para que os preços caíssem de maneira substancial. Em dólares de 2005 (e usando o índice de preços ao consumidor dos Estados Unidos como deflator), o preço do petróleo era de US$ 12,85 em setembro de 1973, chegou a US$ 47,32 em janeiro de 1974, bateu nos US$ 99,68 em novembro de 1979 e caiu a US$ 46,71 em junho de 1985. O preço veio enfim a cair acentuadamente, para US$ 17,20, em julho de 1986.
Ao longo de um quarto de século, a alta de preços dos anos 70 foi completamente revertida, ainda que por curto período, e parte significativa dessa reversão estava concluída na metade dos anos 80.
Boa parte do aumento recente de preços deve durar por anos, ainda que não para sempre. Com que rapidez, portanto, a receita adicional dos países exportadores será gasta? Entre 2003 e 2005, membros da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) gastaram 24% de sua receita anual com o petróleo em importações, ante 52% da receita adicional gerada entre 1973 e 1975 e 42% da receita adicional gerada entre 1978 e 1981. Com base em uma análise econômica mais sofisticada, porém, o "Panorama" conclui que os membros da Opep estão gastando apenas um pouco menos do que se poderia esperar com base em seu comportamento passado, enquanto os países árabes do Golfo Pérsico demonstram cautela muito maior, dessa vez.
Determinar até que ponto a receita adicional será permanente deve influir decisivamente na determinação da velocidade com que será gasta. Os exportadores de petróleo erraram espetacularmente quanto a isso nos anos 80. Precisam se preocupar em não repetir esse erro. No momento, porém, eles têm em mãos um aumento de US$ 40 trilhões em suas reservas, comparado a estimativas de 1999. Se essa situação se sustentar (o que é bastante improvável), a receita permanente desses países poderia crescer em US$ 1,2 trilhão ao ano.
Agora consideremos o padrão dos déficits em conta corrente. Aqui, os contrastes são notáveis.
Nos anos 70, os países avançados não ocupavam posição significativa na captação de crédito, como um grupo, a despeito de seus grandes déficits no comércio de petróleo. Dessa vez, os países avançados, excetuados os Estados Unidos, detêm um substancial superávit agregado em conta corrente. Entre 2002 e 2005, os superávits agregados desses países, excluído o comércio de petróleo, subiram em pouco mais de 0,4% do valor combinado de seus PIBs, o que quase compensou o déficit adicional sofrido com o petróleo.
Nos anos 70, os países em desenvolvimento não exportadores de petróleo operavam com imensos déficits em conta corrente.
Foi neles que a "reciclagem", como então se dizia, dos petrodólares terminou concentrada. Em última análise, a tendência se provou desastrosa, e o resultado foi a crise mundial da dívida dos países em desenvolvimento, no começo dos anos 80. Dessa vez, porém, esses países acumulam déficits agregados em conta corrente bem menores e é muito menos provável que encontrem dificuldades sérias devido ao seu endividamento.
Entre os países em desenvolvimento, o desempenho da China se destaca: se o saldo do comércio petroleiro do gigante em ascensão tivesse se mantido inalterado entre 2002 e 2005, o superávit do país em conta corrente teria sido não de 6% do PIB, mas de 8,5%.
Dessa vez, os Estados Unidos é que respondem pela maior parte da captação. Entre 2002 e 2005, o déficit do país em conta corrente cresceu em 1,6% do PIB, enquanto seu déficit no comércio de petróleo subia em mais de 0,9% do PIB. Que eles sejam abençoados por essa captação, pois é ela que mantém o mundo funcionando.
Quando os países exportadores de petróleo estão tentando acumular posições favoráveis com relação ao resto do mundo, como agora, é bom que os fornecedores dominantes dessas posições não sejam países em desenvolvimento, importadores de petróleo e com problemas de crédito, mas sim os Estados Unidos.
Trata-se de uma grande melhora com relação aos anos 70. Além disso, porque os preços elevados do petróleo precisam gerar déficits mais elevados nos países importadores de petróleo, a dimensão sustentável dos déficits em conta corrente e do acúmulo de passivos pelos Estados Unidos subiu. A presunção de que os déficits norte-americanos precisam cair drasticamente faz menos sentido em nosso mundo posterior ao choque do petróleo.
Mas, como sugere o recente tumulto nos mercados, nem os Estados Unidos conseguem carregar tamanho peso para sempre. Outros países cuja situação de crédito é favorável deveriam arcar com parte da carga.


Martin Wolf é colunista do "Financial Times", jornal em que este artigo foi originalmente publicado.

Tradução de Paulo Migliacci

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