São Paulo, sábado, 20 de agosto de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

Vargas e Lula

GESNER OLIVEIRA

A atual crise política guarda algumas semelhanças e muitas diferenças com a de 1954, que culminou no suicídio de Getúlio Vargas, na manhã de 24 de agosto daquele ano. A economia e a política econômica apresentam contrastes marcantes na comparação entre os dois momentos.
Vargas ficou chocado com as revelações de corrupção em seu governo. Daí sua frase: "Tenho a impressão de me encontrar sobre um mar de lama". O fato mais grave foi a participação do chefe da guarda presidencial, Gregório Fortunato, no atentado a Carlos Lacerda, na rua Tonelero, em Copacabana. O crime custou a vida do major da aeronáutica Rubens Vaz.
Até há alguns anos a garagem do número 180 da Tonelero ainda trazia marcas de bala. Mas o velho portão foi substituído por um novo e eletrônico, tão comum em tempos de violência urbana, inimaginável no Rio de Janeiro dos anos 50.
Lula estava tenso em seu discurso à nação da semana passada. Considerou-se traído diante das evidências de corrupção em seu governo e seu partido.
Vargas e Lula são nomes fortes no imaginário popular. Colocaram-se acima das máquinas partidárias que ajudaram a criar e estabeleceram canais próprios de diálogo com as massas. Marcaram momentos distintos do desenvolvimento brasileiro. Vargas lançou as bases para a industrialização impulsionada pelo Estado; o mesmo Estado que impôs rígido controle sobre os sindicatos. Lula surgiu no cenário político como uma liderança nova nas greves do ABC dos anos 70. Desafiou o sindicalismo chapa-branca, sem, contudo, libertar-se totalmente dos mecanismos oficiais. As dificuldades encontradas até hoje para implementar as reformas sindical e trabalhista revelam a força do legado varguista.
Vargas em seu primeiro período de governo foi ditador. Lula chegou ao poder pela força das urnas. Votaram 115 milhões de eleitores em 2002, que representavam 67% da população. Nas eleições de outubro de 1950, que levaram Getúlio de volta ao Catete, 11 milhões de eleitores votaram, o que correspondia a 22% da população.
Antes mesmo de tomar posse, Vargas já enfrentava uma pressão golpista. A UDN contestava a constitucionalidade de um presidente eleito sem a maioria absoluta de votos. A mesma UDN tentou sem sucesso obter os votos necessários para o impeachment do presidente. A conspiração golpista continuou intensa, especialmente após o crime da Tonelero.
Lula se beneficiou do amadurecimento das instituições democráticas nas últimas duas décadas. Em contraste com Vargas, recebeu o governo após transição tranqüila. O avanço da consciência democrática, a mudança no quadro internacional e do perfil das Forças Armadas permitem descartar qualquer tentativa de golpe.
Vargas enfrentou problemas econômicos agudos. A balança comercial voltou a preocupar, e o boicote ao café brasileiro no mercado dos EUA acarretou perdas de receita. Lembre-se de que o café representava mais da metade das vendas externas. A inflação começou a acelerar, ao passar de 11% em 1950/51 para 22% em 1954.
Em contraste, Lula tem se beneficiado de indicadores estáveis, apesar de surtos de volatilidade a cada nova bomba, como foi o caso de ontem. O Banco Central divulgou nesta semana o melhor saldo mensal de transações correntes desde 1947 (US$ 2,5 bilhões). Os números de inflação têm sido favoráveis: o IGP-M caiu 0,34% em julho.
Vargas não mostrou compromisso com a estabilização. Seus ministros da Fazenda, Horácio Lafer e depois Oswaldo Aranha, não tiveram mandato para conter a inflação. Contrariando seu Conselho Nacional de Economia, Vargas anunciou aumento de 100% no salário mínimo em 1954.
Em contraste, Lula concedeu autonomia para sua equipe no combate à inflação. Os juros têm sido mantidos em níveis imprudentemente altos, na casa dos 14% reais. O governo contornou nesta semana manobra de parte da oposição para elevar o mínimo a R$ 387.
O Brasil se transformou nos 51 anos que passaram desde o desfecho trágico da crise de 1954. As tensões sociais que levaram ao golpe de 1964 já estavam sendo gestadas dez anos antes. Mas o país continuou a se desenvolver, a despeito dos fortes desequilíbrios. É possível superar a crise atual sem ruptura institucional. O maior desafio reside em recuperar a vocação de crescimento que a economia apresentou no passado.


Gesner Oliveira, 49, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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