São Paulo, segunda, 20 de outubro de 1997.




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OPINIÃO ECONÔMICA
Cruzamento com a Brasil

JOÃO SAYAD
Avenida Brasil, cruzamento com a avenida Rebouças. Vindo do Ibirapuera, olhe à esquerda: um grande luminoso eletrônico pode distraí-lo enquanto espera abrir o sinal.
"Faz shhh quando há vazamento", anuncia a Lorenzetti. Depois, anúncio do Denarc que protege nossos filhos na escola contra os traficantes de droga, e do CET, que ordena: "Nunca feche o cruzamento".
Na rua, simpáticas donas-de-casa, gordas e sorridentes, vendem panos-de-prato imaculadamente brancos.
Não é o único luminoso eletrônico. Há outro, mais à esquerda e mais abaixo, na avenida Rebouças, calçada oposta à agência do Itaú. Esse é mais moderno, mas de manhã a luz do sol não deixa ver os anúncios que exibe.
Se vier pela rua Henrique Schaumann, na direção oposta, a visão é diferente. Do lado esquerdo, na calçada do McDonald's, há um grande cartaz, móvel, não luminoso. Ali fazem propaganda no período das eleições ou em outras épocas do ano, anunciam carros e tênis. Onde vão andar tantos carros?
Desse lado do cruzamento, é um pessoal diferente. Às vezes, muitos policiais militares. Outras vezes, homens sorridentes e simpáticos, de bem com a vida mesmo em cadeiras de rodas.
Você encontra meninos e meninas sujos e mal vestidos lavando os vidros dos carros à revelia dos motoristas que mantêm os vidros fechados. Alguns xingam, outros deixam lavar sem pagar, outros pagam.
As crianças lavam os pára-brisas e se sentam nas jardineiras centrais da avenida. Nos dias frios, sentam juntinhas, tiritando de frio.
O trânsito é sempre congestionado. Os cartazes eletrônicos se multiplicam, eram dois, já são quatro e logo, logo vão surgir mais. Há mais um na Rebouças com a Pedroso de Morais, outros mais acima na Henrique Schaumann.
O espaço público -duas avenidas importantes de São Paulo no meio dos bairros mais ricos da cidade- vai sendo ocupado desordenadamente pela concorrência.
Anúncio, mais anúncio, mais anúncio. Um anula o outro. É como se, no estádio, uma pessoa se levantasse para enxergar melhor. Todos se levantam, ninguém enxerga nada.
Chamam isso de jogo de soma zero. Os anunciantes jogam dinheiro fora. A cidade fica mais feia. Em São Paulo o espaço público não é de ninguém.
Além dos anúncios, os pobres também concorrem pelo espaço público. São as pessoas que, segundo a sabedoria técnica dos nossos tempos, deveriam ir à escola e aprender a ler e a usar micro para arranjar emprego.
Não tenho tanta esperança. Acho que elas já sabem ler e não têm emprego mesmo assim.
Ou então pequenos empresários, vendendo flores, bichos de pelúcia, frutas. O vigor da iniciativa privada desperdiçado nas esquinas congestionadas de São Paulo.
São muitos carros e anúncios de novos lançamentos. Muitos anúncios, disputando a atenção do motorista e vendendo coisas inúteis. Muitos pobres pedindo esmola.
O cruzamento decifra o enigma do país. Espaço público invadido desordenadamente por interesses privados, gente humilde tentando sobreviver no meio de tudo isso e muitos, muitos carros.
A única coisa realmente pública que sobrou é uma bandeira do Brasil. Está hasteada no estacionamento do McDonald's. Provavelmente é proibido hastear a bandeira lá.


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.



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