São Paulo, quinta-feira, 20 de outubro de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

Dom Luiz Flávio Cappio

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Escolhi um tema espinhoso para o artigo de hoje. No momento em que escrevo esta frase, são 16h30 de quarta-feira (ontem) e ainda não sei direito como encaminhar o artigo. Já me arrependo da escolha. Não sei, francamente, se estou à altura do assunto.
Venho de família e formação católicas, mas não sou praticante. Não quero tratar a religião dos outros de forma ligeira. Mas, como muitos brasileiros, fiquei profundamente impressionado com a greve de fome do bispo de Barra, dom Luiz Flávio Cappio, contra o projeto de transposição do São Francisco e pela revitalização do rio. Impressionado não só com o seu impacto social e político mas, sobretudo, com o aspecto humano e religioso do que a CNBB chamou de "gesto profético".
A mais importante revista semanal de economia do mundo, "The Economist", publicou uma reportagem sobre o tema, sob o título "O bispo e o santo". A revista comenta que "os opositores do projeto encontraram um Gandhi" e que, diante da imensa repercussão do gesto de dom Luiz, "talvez só um ditador consiga mudar o curso do São Francisco".
Na quarta-feira da semana passada, dia de Nossa Senhora Aparecida, fui à missa que dom Luiz rezou em São Paulo, no convento de São Francisco. Quando cheguei, a igreja estava totalmente lotada. Não vi nenhum político, nenhuma celebridade. Lá estavam praticamente só pessoas do povo.
Nunca assisti a missa tão bonita. O ambiente era tranqüilo, de comoção contida, sem exaltação ou fanatismo. Dom Luiz entrou e percorreu a nave da igreja envolto pelo carinho e pela emoção do povo, que cantava e agitava no ar os folhetos de missa. Ao fundo, o belo altar barroco, banhado por uma luz dourada. A cerimônia teve instantes eletrizantes. Por exemplo: o Pai Nosso, que dom Luiz rezou acompanhado de todos, em dois momentos da missa. O leitor talvez não consiga imaginar o impacto emocional do simples "Pai Nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome...", rezado naquela atmosfera de devoção intensa e comovida.
Dias depois, li com emoção renovada um relato de Leonardo Boff, publicado no "Jornal do Brasil", que me fez entender melhor a força daquela oração. Dom Luiz foi aluno de teologia de Boff em Petrópolis e ficou devendo um trabalho de fim de curso. No último dia, antes de ser transferido para São Paulo, ele colocou por baixo da porta do seu professor uma página em que se lia: "Depois de cinco anos de estudo, reflexão e oração, foi o que restou da minha teologia". E transcrevia, em grego, latim e português, o Pai Nosso.
Desde aquela época, conta Boff, ele se destacava por uma aura de simplicidade e santidade. Na missa que assisti, a homilia de dom Luiz foi perfeita. Nada da retórica enfática do pregador, nenhuma grandiloqüência ou frase de efeito. As suas palavras foram de uma simplicidade intensa e comovente. O que ele quis basicamente foi explicar que a sua decisão radical de fazer greve de fome, se necessário até a morte, não violava os princípios da moral cristã. Citou passagem do Evangelho segundo são João, em que Jesus diz que "o bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas". Reafirmou a sua vontade de viver e disse: "Falaram que eu buscava o suicídio -coitadinhos". Nesse momento, foi interrompido por palmas, palmas e palmas, a não mais terminar.
O povo compreendeu a radicalidade do seu gesto e está com ele. Depois que negociou com o governo a suspensão do jejum, dom Luiz reafirmou publicamente, em várias ocasiões, a sua disposição de retomá-lo, caso o governo não cumpra o acordo feito na ocasião.
Esse acordo foi negociado, no 11º dia da greve de fome, em reunião de cinco horas entre dom Luiz e o ministro Jaques Wagner. Os termos foram expressamente autorizados pelo presidente da República.
O ponto mais importante e delicado é a decisão do governo de "prolongar o debate" sobre a transposição das águas do São Francisco, "ainda na fase anterior ao início de obras, para o esclarecimento amplo de questões que ainda suscitem dúvidas e divergências".
Como tudo o que envolve política e políticos, o acordo carrega a marca da ambigüidade. Dom Luiz entende que o início do projeto foi suspenso. O governo nega essa interpretação.
Pedir grandeza ao atual presidente da República é perda de tempo. Mas uma coisa me parece clara: assim como dom Luiz, o presidente Lula não tem inclinação para o suicídio.
Assim sendo, é bem possível que ele já tenha decidido adiar, por tempo indeterminado, o projeto de transposição do São Francisco.


Paulo Nogueira Batista Jr., 50, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/Elsevier, 2005).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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