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OPINIÃO ECONÔMICA
A Alca e a raposa de La Fontaine
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
As notícias que chegam de
Miami estão indicando que
os EUA e os demais países aceitarão, por enquanto, a preferência
brasileira por uma Alca "desidratada", isto é, um projeto de acordo mais flexível e menos abrangente do que o originalmente previsto. Apesar das resistências de
diversos participantes, parece que
irá prevalecer o entendimento a
que chegaram os EUA e o Brasil
em encontros preparatórios.
Segundo esse entendimento, a
Alca incluiria um conjunto mínimo de benefícios e obrigações. Os
países que desejassem poderiam
negociar compromissos adicionais em bases bilaterais ou plurilaterais. Ninguém seria forçado,
contudo, a assumir obrigações em
temas problemáticos como, por
exemplo, antidumping, investimentos, propriedade intelectual e
compras governamentais.
Ponto para a diplomacia brasileira? Em certo sentido, sim. O
que está sendo acordado em Miami fica, aparentemente, bastante
próximo da proposta levada pelo
Mercosul à reunião de Trinidad e
Tobago, comentada nesta coluna
há cerca de um mês ("Quinta-coluna, quinta categoria", 16 de outubro de 2003). Recorde-se que a
proposta apresentada em Trinidad e Tobago é aquela proposta
"irrealista" e "ideológica", que teria levado o Brasil a um profundo
"isolamento". Valeria a pena, diga-se de passagem, recuperar o
que foi escrito a esse respeito em
outubro na imprensa brasileira...
Por outro lado, não há dúvida
de que qualquer comemoração
seria muito prematura. O recuo
dos EUA é meramente tático e
temporário. A sua motivação é
óbvia. O governo americano quer
evitar um fracasso "à la" Cancún,
que aconteceria, dessa vez, em seu
território, na Flórida, governada
pelo irmão do presidente Bush, e
em Miami, que pretende ser a sede da Alca.
Os EUA não disfarçam o seu
descontentamento com o formato
"desidratado". A agenda definida
em Miami será, tudo indica, deliberadamente vaga e genérica. Ao
mesmo tempo, o ministro do Comércio Exterior, Robert Zoellick, e
o negociador-chefe dos EUA na
Alca, Ross Wilson, continuam reiterando o compromisso dos EUA
com uma Alca "abrangente",
conforme a concepção original.
Em paralelo, anunciam a disposição de negociar ou continuar negociando, dentro do modelo
abrangente, acordos de livre comércio com alguns países ou grupos de países latino-americanos.
Outros governos criticaram bastante o novo formato que surgiu
do entendimento EUA-Brasil. Canadá, Chile e México, por exemplo. Não por acaso, são países que
já têm acordos de livre comércio
com os EUA no formato abrangente, tendo feito grandes concessões em questões como serviços,
patentes, licitações públicas, investimentos e arbitragem internacional para disputas entre Estados e empresas privadas. Insistem em que o Brasil, a Argentina
e os demais participantes da Alca
devem assumir compromissos do
mesmo tipo, considerados indispensáveis nos acordos comerciais
"de última geração". Estão um
pouco na posição daquela raposa
da fábula de La Fontaine, que,
tendo perdido a cauda numa armadilha, tentou convencer as outras de que cortar a cauda era a
última moda.
O que canadenses, chilenos e
mexicanos estão dizendo é que
brasileiros e argentinos não podem obter as mesmas vantagens
(em termos de acesso ao mercado
dos EUA, por exemplo) se não estão dispostos a assumir as pesadas obrigações incluídas no Nafta
e no acordo bilateral EUA-Chile
em matéria de serviços, investimentos, propriedade intelectual e
compras governamentais.
Em tudo isso, há muito jogo de
cena, evidentemente. Quem deu
esse mote foi o próprio governo
dos EUA. Antes mesmo da reunião de Miami, Zoellick e outras
autoridades americanas afirmaram ou insinuaram que, na Alca
flexível, as vantagens seriam proporcionais às obrigações. Em outras palavras, os países que não
aderissem a certos capítulos do
acordo seriam punidos em termos
de acesso a mercados.
O Brasil rejeitou imediatamente essa interpretação, e a questão
ficou no ar. Será certamente recolocada. Ou diretamente pelos
EUA ou indiretamente, com mão
de gato, por intermédio de países
que servem de massa de manobra
de Washington na negociação da
Alca.
A posição do Brasil foi bem explicada pelo nosso negociador-chefe, embaixador Macedo Soares. O governo aceita o princípio
de que deve haver correspondência entre benefícios e obrigações.
Mas entende que essa correspondência deve ser negociada dentro
de cada categoria do acordo, e
não de forma cruzada entre acesso a mercado e normas em outras
áreas.
Além disso, como observou um
dos principais jornais americanos, em editorial, o princípio de
que devem ser punidos países que
não assumem compromissos em
determinadas áreas também teria que ser aplicado aos EUA
("The Washington Post", 19 de
novembro de 2003). Afinal, Washington já indicou abundantemente que não quer assumir na
Alca obrigações em matéria de
antidumping nem alterar substancialmente os seus poderosos
esquemas de proteção agrícola.
Em suma, a batalha apenas começou.
Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto
de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A
Economia como Ela É ..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
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