São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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ARTIGO

EUA ignoram déficit comercial

FLOYD NORRIS
DO "NEW YORK TIMES"

Culpe os estrangeiros. Trata-se de uma tática política já tradicional nos Estados Unidos, e este ano não é exceção.
Com as perspectivas de emprego incertas, sopram ventos protecionistas. O presidente Bush nesta semana criticou severamente os subsídios europeus à fábrica de aviões Airbus, que ultrapassou a Boeing e assumiu a liderança mundial como fornecedora de jatos comerciais. O senador John Kerry concentrou seu fogo nos "executivos traiçoeiros", presidentes de empresas que transferem para o exterior postos de trabalho.
Essas posições de campanha tanto refletem quanto obscurecem uma realidade que nenhum dos candidatos parece disposto a tratar com seriedade, a do imenso déficit comercial americano.
Em 1992, os EUA tinham um superávit comercial de quase US$ 8 bilhões com os 15 países que então integravam a União Européia e um déficit de US$ 18,3 bilhões em seu comércio com a China. Os números mais recentes, referentes aos 12 meses até junho, demonstram um déficit de US$ 99,8 bilhões com os 15 da União Européia e um déficit de US$ 138,7 bilhões com a China.
Se as considerarmos como um todo, as posições cada vez piores de comércio dos EUA com a China e a União Européia respondem por 46% da deterioração do balanço comercial americano de 1992 para cá.
A diferença é que a Europa tende a fornecer produtos de qualidade mais elevada e não vem acumulando um imenso estoque de títulos do Tesouro americano. Os números da semana demonstram que a China tem US$ 16,48 bilhões em títulos do Tesouro, atrás só dos US$ 689,3 bilhões do Japão.
No segundo trimestre, o déficit comercial dos EUA ultrapassou a marca dos 5% do PIB do país, um novo recorde. Seria motivo de alarme em outras economias, mas os americanos seguem adiante como se nada estivesse acontecendo.
Há quem argumente que o déficit comercial é um sinal de força. Ele tem de ser compensado pela aquisição por estrangeiros de ativos em dólares, e essas compras supostamente demonstram até que ponto os estrangeiros estão ansiosos por investir nos EUA.
Mas, no primeiro semestre, os estrangeiros adquiriram US$ 270,5 bilhões em títulos do Tesouro, duas vezes o que investiram em papéis corporativos, que oferecem rendimento mais elevado e envolvem maiores riscos.
Muitas das aquisições de títulos do Tesouro são menos que voluntárias. Os BCs da China e do Japão compram papéis do Tesouro americano para sustentar a cotação cambial do dólar e preservar a demanda pelos produtos de exportação de seus países.
Agora, o BC americano começa a se preocupar com o déficit comercial. O assunto foi tema de uma longa discussão durante a reunião de junho e gerou uma série de estudos. De acordo com as minutas da reunião, "a equipe apontou que déficits externos dessas proporções não podem ser sustentados indefinidamente", mas não previu quando a situação se tornaria insustentável.
Steve Roach, economista-chefe do Morgan Stanley, sugere que o fim não será agradável. Quando a crise chegar, diz ele, a primeira vítima será o valor do dólar. A seguir, os estrangeiros que detêm todos aqueles títulos do Tesouro exigirão compensação pelos riscos cambiais, gerando uma alta nas taxas reais de juros. Isso desgastará a posição dos consumidores americanos altamente endividados e causará um corte no consumo, que, por sua vez, ajudará a reduzir o déficit comercial.
Como fazer com que esse processo aconteça da maneira menos dolorosa possível seria um tema razoável de discussão para uma campanha presidencial. Mas não é o que vai acontecer.
Em lugar disso, há o risco de que saiam em busca de bodes expiatórios, empresas estrangeiras bem-sucedidas ou grupos americanos que investem no exterior.


Tradução de Paulo Migliacci

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