São Paulo, quinta, 22 de janeiro de 1998.



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OPINIÃO ECONÔMICA
Crash global?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Meus amigos, como é denso, como é espesso, quase impenetrável, o véu de lendas, mistificações e exageros interposto entre a indefesa opinião pública brasileira e a realidade internacional. O que temos, em geral, é um festival de fantasias para consumo do cidadão-eleitor desavisado. Quando muito, servem-nos meias verdades. E, como dizia Tennyson, a meia verdade é mais perigosa do que a mentira pura e simples.
Por mais que se esforce para entender o que acontece, o brasileiro médio dificilmente escapa da condição de vítima deplorável das mais insidiosas manipulações. A mais recente é a do "crash global". Autoridades governamentais e mídia esmeram-se em propagar a versão de que o planeta está sendo engolfado por uma crise de proporções mundiais, da qual ninguém consegue escapar.
Juntou a fome com a vontade de comer. O jornalismo escrito, falado e televisado vive, como se sabe, dos seus escândalos e das suas catástrofes reais ou imaginárias. Já o governo vive da ofuscação da opinião pública. Acrescente-se a isso a contribuição (marginal) dos remanescentes do marxismo, alguns dos quais não abandonaram as suas inclinações apocalípticas, e temos o ambiente ideal para a difusão de toda a sorte de exageros sobre o quadro mundial.
A onda em torno do "crash global" se deve, em grande medida, às conveniências governamentais, que sempre encontram farta acolhida nos meios de comunicação de massa. O que se deseja é passar a idéia enganosa de que o governo brasileiro é vítima de uma crise que atinge o mundo inteiro.
Vítima, porém não indefesa. Ao contrário, temos um governo exemplar, disposto a enfrentar com coragem, determinação e medidas impopulares os choques externos que interromperam a "exitosa" trajetória da sua política econômica.
Durma-se com um barulho desses. Primeiro (e desculpem se estou dizendo o óbvio), com as medidas adotadas no final do ano passado, o governo brasileiro está apenas tentando salvar a própria pele. Como sabe qualquer analfabeto em economia política brasileira (a essa altura, até certos economistas do PT), se o Plano Real for por água abaixo, o governo vai junto. Defender o Real, ainda que com juros estratosféricos, aumentos de impostos, desemprego etc., é uma simples medida de autopreservação de um governo que, por causa dos seus descuidos e suas leviandades, tem hoje margem muito reduzida de manobra.
Segundo, e mais importante, não há "crash global". Pelo menos por enquanto, a crise econômico-financeira não tem um alcance que justifique o uso de expressões como essa. Até o momento, a crise de 1997/98 é muito menos internacional do que, por exemplo, a que foi desencadeada pelo primeiro choque do petróleo, em 1973/74. Ou do que a recessão mundial deflagrada pelo segundo choque do petróleo e pela alta dos juros nos EUA em 1979/82.
É verdade que os problemas atuais são mais graves do que os decorrentes do "efeito tequila" de 1994/95. Não há dúvida de que as economias do Japão e de algumas nações importantes do leste da Ásia atravessam dificuldades profundas. E quando uma economia do peso da japonesa ameaça afundar, sempre há o risco de que a sua crise possa converter-se em uma recessão mundial, comparável a ou até mais severa do que as experimentadas pelo capitalismo no período posterior à Segunda Guerra.
Mas o fato é que, até agora, a incidência dos problemas recentes variou enormemente de região para região e de país para país. Em algumas áreas centrais da economia internacional, as dificuldades ficaram circunscritas às Bolsas de Valores ou aos setores da economia que se relacionam mais intensamente com o leste da Ásia.
Nos EUA, por exemplo, o desempenho macroeconômico continua, de maneira geral, bastante bom: crescimento significativo, desemprego baixo, inflação sob controle. Na Europa, excetuadas algumas economias do antigo bloco soviético (principalmente a própria Rússia), o quadro é de melhora das condições macroeconômicas. É verdade que a crise no leste da Ásia irá reduzir a taxa de crescimento na América do Norte e na Europa, mas não há por enquanto uma expectativa de recessão nessas regiões em 1998. Nos EUA, a desaceleração do crescimento é, até certo ponto, bem-vinda e tende a tornar desnecessários os aumentos de juros por parte do Federal Reserve no curto prazo, tendência que ajuda países pendurados como o Brasil.
Mesmo na região mais atingida, a crise não é geral. Até agora, economias como a da China e de Taiwan, por exemplo, foram relativamente pouco afetadas, apesar de estarem muito próximas do epicentro do suposto "crash global".
Fora do Leste Asiático a turbulência financeira recente atingiu, sobretudo, países periféricos que, por obra e graça de suas políticas nacionais, se encontravam em posição vulnerável, de dependência excessiva em relação a fluxos financeiros externos. Aqui aparecem com destaque países como o Brasil, a Rússia e outros pingentes da fase de liquidez internacional abundante.
Este é o traço de união na experiência recente da maioria dos países periféricos "submergentes": ter confiado demais na disponibilidade de capitais internacionais, grande parte dos quais voláteis ou de curto prazo.
Bem. Fiar-se na estabilidade dos mercados financeiros é quase tão absurdo como presumir virgindade em uma prostituta. Na semana passada, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, resumiu o problema com inegável clareza e espírito de síntese: "Vivemos em um mundo perigoso. A velocidade das transações financeiras internacionais, aliada ao seu baixo custo, tornou o mercado muito mais arriscado para países em desenvolvimento."
Francamente! Será que era preciso acontecer a crise asiática para que se chegasse a essa conclusão elementar?
O nosso problema mais urgente não é o "crash global" de que tanto se fala, mas a ameaça de um "crash" nacional, provocado pela gritante irresponsabilidade da política econômica brasileira dos últimos anos.


Paulo Nogueira Batista Jr., 42, professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net



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